domingo, 9 de abril de 2023

Parte II – Os Miseráveis, Victor Hugo (1862) – Crítica

 



Frequentemente quando falo no blog com pessoas conhecidas dizem-me que os artigos do Marco são muito diferentes dos meus. E com razão, por dois motivos: o primeiro, porque vimos de meios diferentes e temos uma base de formação diferente; o segundo, e o mais evidente, é porque eu não tenho os anos de experiência profissional e de vida que o Marco tem. Se é verdade que o tempo não volta atrás, é igualmente verdade que não se pode comprar experiência, e há aprendizagens na vida que somente com o decurso do tempo se consegue alcançar.


“Morrer não custa nada; o terrível é não viver.”.


Senti isto com Victor Hugo: um livro funciona como retrato do modo de pensar e personalidade do escritor numa determinada fase da vida e num determinado tempo. Por isso, contrariamente a Nossa Senhora de Paris (que critiquei oportunamente aqui), n’os Miseráveis Victor Hugo mostra um nível de maturidade e de experiência de vida que não o podia ter feito na década de 30 do século XIX.


“Esta época há de passar e já está a passar: começamos a compreender que, se pode haver força numa caldeira, só pode haver poder num cérebro; dito noutros termos, não são as locomotivas que levam e arrastam o mudo: são as ideias.”.


Na parte I (disponível aqui) coloquei a questão sobre o que é a miséria humana. É algo que temos como garantido na vida, o sofrimento, e é frequente fazermos o exercício de comparar sofrimentos de uns com outros. O que senti precisamente nesta obra é que a resposta à questão sobre o que é o miséria humana faz-se sentir em incidências diferentes, de modos diferentes e em pessoas de classes sociais diferentes: a resposta a esta questão pode estar nas enormes desigualdades sociais e na pobreza extrema de dois órfãos parisienses que procuram num pedaço de brioche atirado ao lago do jardim do Luxemburgo algo que fosse para matar a fome; mas a resposta pode também estar no coração partido de um avô que quer voltar a reconciliar-se com o neto mas tarda em ganhar coragem para dar o passo necessário; e o que dizem também das emoções do amor de Marius e Cosette, que oscila entre momentos de euforia e desespero, tão próprio deste sentimento? Ou ainda em Jean Valjean, cujo peso de um passado cruel e injusto vem ainda acrescentar a solidão própria de um pai que educa uma pequena menina como filha e a vê partir da sua asa? E o que dizer ainda de Thernardier, o burguês falido cuja baixeza patrimonial é somente equiparada com a baixeza de caráter?


“O amor quase substitui o pensamento. O amor é um ardente esquecimento de tudo o mais. Quem é que pode pedir lógica à paixão? Não há encadeamento lógico absoluto no coração humano, como também não há figura geométrica perfeita na mecânica celeste.”.


No primeiro artigo, dei ainda destaque ao polícia fanático Javert, o qual após os acontecimentos tumultuosos em Paris no verão de 1832 e um novo confronto com Jean Valjean, tem um desfecho absolutamente surpreendente. Na verdade, Javert inicialmente foi caracterizado pela mente rígida e inflexível: nesta última parte da obra, em poucas páginas e em moldes absolutamente surpreendentes, Victor Hugo faz o leitor sentir empatia por este personagem que pela primeira vez na vida é esmagado pelo peso da consciência e é obrigado a refletir sobre o seu papel na sociedade enquanto figura de autoridade.


“O destino tem certos extremos que raiam o impossível e além dos quais a vida é um precipício. Javert estava num desses extremos. Uma das suas ansiedades era ser forçado a pensar. A própria violência de todas essas emoções contraditórias obrigava-o a fazê-lo. Pensar era, para ele, uma atividade inusitada e singularmente dolorosa.”.


Tanta coisa pode ser dita sobre esta obra magnifica. Em termos similares (embora com algumas diferenças) como Tolstoi escreve o Guerra e Paz, Victor Hugo, ao tempo com 60 anos, mostra com uma maturidade e enorme sabedoria que a experiência de vida numa França novecentista lhe deu refletir sobre temáticas acessórias mas complementares, desde o significado do uso do calão pelas classes que mais sofrem, à importância da conservação da identidade urbanística de uma cidade, a (i)racionalidade do aproveitamento e reaproveitamento de recursos, e, como quero destacar neste artigo, uma questão intemporal e muito relevante para os dias de hoje: como alcançar a prosperidade social? Foi na época da vida de Victor Hugo que serviu de advento às ideias política e suas interpretações que moldam (pelo menos ideologicamente), os partidos políticos da atualidade. Não tenciono no blog fazer comentário político ao Portugal de hoje, dado que a minha ideia com esta página é a de criar um espaço em que as pessoas possam livremente escrever e refletir e com base nisso tirar as suas conclusões. Mas não resisto em deixar no ar esta pergunta: qual o partido que se assume frontal e diretamente contra a prosperidade social? Deixo a minha resposta: nenhum. Cada qual, pelo menos ideologicamente, tenta caminhos diferentes para alcançar o mesmo objetivo.


"Uma das dolorosas ansiedades do pensador é ver planar a sombra sobre a alma humana e sentir nas trevas o progresso adormecido sem o poder despertar.”.


A segunda parte da obra nesta edição da RELÓGIO D’ÁGUA completa o terceiro livro, com o nome de Marius, o quarto livro que é o único que não tem o nome de um personagem e onde Victor Hugo começa a fechar a história, e o quinto e último livro com o nome do personagem principal: Jean Valjean. Pelo número de temáticas que aborda e pelo volume total da obra, este livro exige algum tempo de dedicação, e a compreensão implica alguma pesquisa sobre a História de França. É, tal como o Nossa Senhora de Paris, um livro que exige alguma força de vontade dado não ser uma obra que se consiga ganhar afinidade com os personagens nas primeiras páginas. Isso não quer dizer que não se chegue lá: aliás, os Miseráveis têm pelo menos 60 adaptações ao cinema, o que prova o cuidado e a capacidade que a escrita de Victor Hugo tem em agarrar o leitor ao enredo.


Disse na Parte I que estava a ler uma obra-prima: e agora volto a dizer e confirmo. Os Miseráveis, por tudo o que aborda, pelo seu emocionante enredo (sobretudo o seu final que é uma verdadeira montanha-russa de emoções), por Victor Hugo ter conseguido transmitir toda a mensagem que tinha em mente – é um livro absolutamente excecional e que recomendo vivamente!


“São estas as verdadeiras felicidades. Não há alegria sem estas alegrias. O amor é o único êxtase. Tudo o resto chora. Basta amar ou ser amado. Não peçam mais nada depois. É esta a única pérola que podemos encontrar nos caminhos tenebrosos da vida. Amar é uma consumação”.


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