domingo, 22 de janeiro de 2023

O poder do erro (Marco Garcia)

 

Prólogo: “Não há duas sem três”, como se costuma dizer. Após o enorme sucesso que o artigo da matemática e do digital fizeram nesta página, o Marco, com a qualidade que nos habituou, escreveu um terceiro artigo que mais não é que o corolário dos artigos anteriores. Recordo, na minha experiência pessoal na Faculdade de Direito, de ter tido um professor no primeiro ano que nos dizia muitas vezes nas aulas que nos preparavam para na vida prática não falhar, porque o mundo não admitia erros. Foi interessante ler a perspetiva de gestor do Marco sobre esta temática, que creio ser transversal a todas as áreas do saber e da realidade.

O Marco com este artigo termina a sua trilogia, mas espero que isto não seja o fim da sua aposta na escrita, que desejo que continue e será sempre bem-vinda no meu blog. Sem mais demoras, um novo artigo. (Luís Araújo)



Se acreditares que existe outro método de pensar para além do método analítico, e se acreditares que existem outras relações para além da relação causa-efeito, então também acreditas que podem existir outras formas de tratar o erro. O método sintético, oposto ao método analítico, amplamente desenvolvido por René Descartes no século XVII, na sua brilhante obra Discours de la methode de 1637, foi alvo de estudo pelo professor Russel. Ele descreve que a análise é composta por três partes: primeiro, separas o que queres entender  em partes; segundo, tentas entender o comportamento das partes isoladamente; e terceiro, agregas o entendimento das partes no entendimento do todo. Este é o método utilizado por todas as crianças de 4 anos de idade, quando tentam entender o mundo que as rodeia, fazem-no com os brinquedos, tentam desmontá-los, depois tentam entender o comportamento das partes, ou seja, tentam entender como elas se relacionam, e por último tentam montar esse entendimento no entendimento do todo, e esperam deixar o brinquedo da mesma forma que o encontraram, por razões óbvias. Todas as crianças são curiosas por natureza, tem vontade de aprender, e alegria em aprender, e fazem-no através do método analítico, e passados quase 400 anos, continua a ser o método de pensar mais utilizado no mundo ocidental. Por isso, se quiseres entender um sistema o primeiro passo da análise diz-nos que temos de separar o sistema que queres entender em partes.

Qual é o oposto disto? Se eu quiser entender um sistema, em vez de olhar para ele como um todo que tem de ser separado em partes, vou olhar para ele como sendo uma parte para colocar no todo. Portanto, o primeiro passo do pensamento sintético é identificar um todo em que o sistema que eu tento explicar é uma parte; e o segundo passo é tentar entender o comportamento das partes isoladamente (em oposição à procura da explicação do todo que contem a parte); o terceiro passo é agregar o entendimento das partes como entendimento do todo. Este terceiro passo da síntese é o corolário da desagregação do entendimento do todo no entendimento da parte.

 Ambos os métodos são necessários para o entendimento da realidade: a análise diz-te como se faz, a síntese, diz-te porquê que se faz, da forma como se faz. Uma dá-te conhecimento, e a outra dá-te entendimento, e são ambas necessárias. Por isso, para obtermos entendimento, temos de utilizar um pensamento sintético. Agora, isto não nega o valor da análise, a ciência não progride dessa forma, mas sim acrescentando camadas em cima das mais antigas, ela diz que temos de combinar a análise e a síntese, para conhecermos e entendermos o nosso ambiente porque a análise gera conhecimento não gera entendimento, e perceber isso, faz toda a diferença. A combinação destes dois métodos de pensar veio a resultar naquilo a que chamamos de systems thinking, a análise é suplementada pela síntese para produzir o pensamento sistémico, mas isto levanta outra questão: se existe outro método de pensar para além do método analítico, será que existe uma outra relação que explique tudo, para além da relação causa-efeito? Sim, existe! E a essa essa outra relação, deu-se o nome de relação “produto do produtor”. Na relação causa-efeito, tu tens de fazer duas coisas, tens de demonstrar que a causa é necessária para o efeito. O que é que isso quer dizer? Se eu bater com o pé no chão, eu emiti um barulho que vocês ouviram, o batimento do meu pé no chão causou o barulho. Para mostrar que o batimento do pé provocou o barulho, a primeira coisa que eu tenho de fazer é demonstrar, que se eu não tivesse batido com o pé no chão vocês não tinham ouvido o barulho, isso é demonstrar a necessidade. Agora, a segunda coisa que eu tenho de fazer, é mostrar que a causa é suficiente, isso significa que eu tenho de mostrar que o batimento do pé no chão, é suficiente para provocar o barulho que vocês ouviram, se eu não batesse com o pé no chão vocês não ouviam aquele barulho. Ao fazer estas duas coisas eu mostrei que o batimento do meu pé no chão, a causa, provocou o barulho que ouviram (o efeito). A relação causa-efeito é uma relação que é necessária e suficiente, e sempre que queres explicar um fenómeno, tudo o que tens de fazer é encontrar a sua causa.

Portanto, eu encontro a causa e agora tenho uma explicação completa do fenómeno, porque a causa é suficiente para o efeito, e durante séculos, esta relação foi utilizada para explicar tudo, e ainda continua a ser. Nesta visão do mundo não existe propósito próprio nem livre-arbítrio. Mas o mais incrível é que continuamos a utilizá-la nos dias de hoje, nós fazemo-lo de forma automática, sem nos apercebermos.

No século XVI, por volta de 1589, Galileu conseguiu provar que uma teoria amplamente aceite por todos, desde o tempo de Aristóteles, estava incorreta. O que é que Galileu quis dizer quando, através do seu método experimental, elaborou a lei dos corpos em queda livre? O que é que a palavra “livre” nos diz? Diz-nos que um corpo está a cair num vácuo. O que é um vácuo? É precisamente um sítio onde não existe ambiente, e só passados mais de 380 anos, em 1971 é que isso foi testado pelo astronauta David Scoot quando ele pisou a Lua, e deixou cair uma pena e um martelo ao mesmo tempo, e ambos atingiram a superfície lunar em simultâneo. Mas o mais chocante não foi esta descoberta, o impressionante, é que durante mais de 1900 anos, ninguém teve a curiosidade de testar a teoria de Aristóteles, precisamente porque ele era visto como uma figura de autoridade, e nunca ninguém tinha ousado desafiar a sua autoridade, por razões óbvias. Numa época em que a única instituição universal que existia era a Igreja Católica, ela tinha poder absoluto sobre tudo, e promovia a conformidade e o controlo da sociedade através do medo. A curiosidade era considerada pecado, e as consequências para quem desafiava a autoridade eram bem reais. As leis universais de Sir. Isaac Newton, descritas na sua grandiosa obra-prima da física lançada em 1687 Philosophiae Naturalis Principia Mathematica eram universais, não por existirem em todos os ambientes, mas precisamente por não existirem em ambiente nenhum, defendendo uma visão completamente mecânica da realidade, onde podes prever tudo, sem a influência do ambiente. Durante séculos foi amplamente aceite pela generalidade das pessoas, a ideia de que o Universo era uma máquina criada por Deus, descrita por leis matemáticas, onde a matéria era movida por essas leis, e onde o Universo  era visto como um relógio hermeticamente fechado. A expressão hermeticamente fechado quer dizer o quê? Quer dizer que não existe ambiente, ou seja, nós não tínhamos uma visão de um Universo cheio, mas sim de um Universo vazio, onde o ambiente não era necessário para explicar nada, e embora alguns Historiadores discordem desta visão Newtoniana do Universo, onde este era visto como um enorme relógio, o que é certo é que ela permeou a nossa sociedade de tal forma, que hoje em dia, é difícil separarmo-nos dela, até porque a linguagem utilizada nessa obra aponta nesse sentido,  e continua a ser a visão dominante nos dias de hoje, completamente mecânica, previsível e determinista, onde podes controlar tudo, desde que tenhas, disciplina, organização, rigor matemático e cuidado na argumentação.

Isso não é verdade! Esta visão reducionista da realidade só tem servido para alimentar o ego, de todos aqueles que se encontram numa posição de poder, criando divisão e atrito. É uma visão simplificada da natureza da realidade que ficou tão enraizado na nossa cultura que nem nos apercebermos que ela passou a fazer parte de nós, e todos aceitamos isso sem questionar, absorvemo-la por osmose no processo de aculturação. Todos aprendemos estas leis, e elas continuam a ser muito úteis para construir todas as maravilhas do mundo moderno, mas não são suficientes para entendermos a natureza da realidade, para isso, tu precisas sempre de entender o “ambiente”. O que é um laboratório? Um laboratório é um sítio onde podes efetuar experiências excluindo o ambiente, todas as leis fundamentais da física clássica dizem-te como é que as coisas se vão comportar sem a influência do ambiente, e um laboratório é precisamente um sítio construído para te capacitar a estudar o efeito de uma variável noutra, sem a intervenção do ambiente, e isto tem um impacto gigante na forma como nós percecionamos a natureza da realidade, e na forma como conduzimos as nossas vidas, e estruturamos o nosso pensamento. Acontece, porém, que em 1898, cerca de 200 anos depois de Newton ter formulado as suas leis,  um jovem chamado Edgar Arthur J. Singer escreveu o artigo mais radical do último século acerca da ciência. O que ele revelou é que durante a era da revolução industrial, a ciência tinha feito batota. Como? Ele disse: considerem um carvalho e uma bolota. É um carvalho o resultado de uma bolota? Obviamente que não. Porquê? Na relação causa-efeito, lembram-se das duas condições de uma causa, primeiro a bolota é claramente necessária, não consegues obter um carvalho sem uma bolota, mas neste caso, não é suficiente, e é aqui que reside a grande diferença, ou seja, passamos a ter uma relação que é necessária, mas não é suficiente, em oposição a uma relação que era necessária e suficiente. Como é que sabemos isso? Bem, se eu agarrar numa bolota e lançá-la no oceano, eu não obtenho um carvalho, se a colocar num glaciar ou no deserto, eu não obtenho um carvalho, ou seja, a bolota não é suficiente para obter um carvalho. Para que isso aconteça, eu tenho de ter o solo necessário, os nutrientes necessários, a quantidade certa de humidade, uma certa luminosidade, e todos os outros fatores necessários à obtenção de um carvalho. Ao conjunto desses fatores é que chamamos “ambiente”.

Portanto, a relação aqui é necessária, mas não é suficiente, agora, isto não foi uma descoberta deste jovem, isso já era conhecido há muito tempo pela ciência, mas como é que a ciência lidou com isto?  Ela chamou a esta relação de causalidade probabilística, ou, causalidade não determinista. Agora, aquilo que Singer disse foi ludibriar. Porquê? Porque não pode existir tal coisa como causalidade probabilística. Se uma causa é por definição necessária e suficiente, então qual é a probabilidade de o efeito da causa ocorrer? Só pode ser um, e mais nenhum. Não faz sentido a probabilidade de uma causa. O determinismo é uma consequência da causalidade, do significado de causalidade, é uma contradição ter uma causalidade não determinista. Ele disse, isto é uma relação totalmente diferente, não é causa-efeito, e deu-lhe um nome, e chamou-lhe “produto do produtor”. E pela primeira vez o ambiente começou a ser utilizado para explicar tudo o que se passa no Universo, nada pode ser explicado sem o ambiente, nada pode ser entendido de forma independente do seu ambiente, tudo é ambientalmente relativo. E onde o livre arbítrio e o propósito próprio passam a fazer sentido, este tipo de pensamento relativista forçou a que pensássemos de forma diferente acerca da natureza da realidade, e despertou a nossa atenção para a forma como tratamos o erro. Nesta visão do mundo as coisas não são preto no branco como no determinismo, onde tudo é previsível e controlável através de fórmulas algorítmicas, onde a razão explica tudo, e só existe uma forma certa de fazer as coisas. Isso significa que todas as outras estão erradas: tal cria divisão e atrito, não cria  união e harmonia, porque, na visão determinista, ninguém quer estar errado, e todos têm medo de estar errados, e pior, criámos uma sociedade motivada pelo medo de estar errado, precisamente porque o erro foi estigmatizado e recebeu uma conotação negativa, porque a pior coisa que pode acontecer na visão determinista, é o erro, porque é através do erro que o determinismo define o poder, neste caso, pela ausência de erro, e é precisamente através da forma de tratarmos o erro que  podemos libertar-nos desta visão reducionista e determinista  da realidade, e passarmos a definir o poder, não pela ausência de erro, mas pela sua inclusão. As pessoas que mais erram são as que mais aprendem, porque o erro faz parte do processo de aprendizagem. Mas ao invés de termos uma sociedade motivada pelo medo, passamos a ter uma sociedade motivada pela alegria na aprendizagem, pela curiosidade e criatividade, que todos temos no início da vida, e que nos vai sendo retirada pelas forças deterministas à medida que vamos avançando na idade.

Será que existe uma outra forma de tratar o erro? Sim,  existe! Mas nós não a reconhecemos. O primeiro tipo de erro é quando tu fazes uma coisa que não devias ter feito. Por exemplo, quando a Eastman Kodak comprou a Sterling Drug em 1988, eles cometeram um erro muito sério, depois tiveram de a vender mais tarde em 1994, com um prejuízo de 2 biliões de dólares, eles fizeram uma coisa que não deviam ter feito, isso chama-se um erro de comissão; já o segundo tipo de erro é quanto tu devias ter feito uma coisa que não fizeste, isso chama-se um erro de omissão, e é precisamente este erro que a nossa sociedade não reconhece, porque continuamos a pensar de forma determinista. Por exemplo, a Eastman Kodak podia ter comprado a Xerox por 11 milhões de dólares numa determinada altura e não o fez. A Xerox podia ser a maior produtora de computadores pessoais do mundo, e deixou passar essa oportunidade para que Wozniak e Jobs criassem a Apple, eles não o fizeram, isso foi um erro de omissão. Dos dois tipos de erro (de comissão e de omissão) qual deles acham que é mais importante? O mais importante é o erro de omissão, e por mais incrível que pareça, nós não o reconhecemos. A nossa sociedade não o reconhece. Se olharem para todos os casos de falências ou próximos de falência, como o caso da IBM em 1980, que poderia ter aberto falência se não fosse, Lou Gerstner, o que é que eles fizeram que foi errado? Não foi o que eles fizeram, foi o que eles não fizeram. O que é que eles não fizeram? Eles não prestaram atenção aos computadores pessoais, eles continuaram a apostar nos mainfraims, quando todos os outros estavam a apostar na miniaturização. A Kodak foi á falência porquê? Porque não prestou atenção á fotografia digital. Sabiam que a Kodak podia ter comprado a Fuji numa determinada altura e não o fez. Portanto, erros de omissão são mais importantes do que erros de comissão, certo.

Agora, olhem para o nosso sistema contabilístico. O nosso sistema contabilístico apenas regista um destes dois tipos de erros. Qual deles? Aqueles em que tu fizeste alguma coisa que não devias ter feito, erros de comissão. Quando a Kodak comprou a Sterling Drug, ficou registado nas contas da empresa, quando não comprou a Xerox, onde é que isso apareceu? Em lado nenhum. Exatamente, em lado nenhum. Agora, tu estás numa empresa, instituição, fundação, organização, corporação, associação, que diz que, se cometeres um erro é uma coisa muito, muito má, e o único erro em que tu podes ser apanhado, é aquele em que tu fizeste uma coisa que não deverias ter feito (erro de comissão), qual é a tua melhor estratégia para protegeres a tua posição, e pareceres que és muito bom? Não fazer nada. É por isso que não temos transformação ou mudanças estruturais nas empresas, estruturas políticas, no sistema jurídico, no sistema de saúde, no sistema de educação, no sistema económico, ou em qualquer outro sistema, nem nunca vamos ter, enquanto não mudarmos a nossa forma determinista de pensar, e de tratar o erro. Esta forma de pensar leva a que todos aqueles que se encontram numa posição de poder, seja qual for o sistema, tentem preservar o status quo, e que continuem a fazer o seu business as usual, e uma das formas de o conseguirem é aumentando a conformidade e o controlo, punindo severamente o erro de comissão e ignorando o erro de omissão. Como disse o professor Russel, “uma das formas de gestão mais utilizadas no mundo ocidental chama-se dividir para reinar”, e tem sido a forma mais utilizada pelos gestores e figuras de autoridade para manter o seu bussines as usual, e a forma mais consensual de o conseguir é através das  avaliações de desempenho ou avaliações por objetivos com base em KPI’s, que na teoria soa fantástico por premiar o mérito, mas na prática não funciona, é impossível dentro do nosso atual padrão de pensamento determinista, porque para teres pessoas muito boas, o que é que isso faz das outras em comparação? Exato, pessoas muito más, e isso cria atrito e divisão. Isso é mau para as pessoas e para o negócio, é mau para a economia, é mau para a sociedade, e é mau para todos os sistemas.

Este sistema é sustentável? Não, não é, e a prova disso é a quantidade de falências que assistimos todos os anos e o esvaziamento do valor das chamadas grandes empresas por todo o mundo. No nosso País  nos últimos 10 anos saíram 18 empresas da Bolsa de Lisboa e entraram apenas 6. Existiu alguém na Alemanha que chamou à avaliação de desempenho, avaliação pelo medo, pois é precisamente isso que este e outros modelos deterministas fazem, eles promovem o medo, a divisão, a arrogância, a mentira, a manipulação, a persuasão, o cinismo, a hipocrisia, ao invés de promover a humildade, a coragem, a criatividade, a honestidade, a verdade, a compaixão, a colaboração, a entreajuda, o espírito de equipa, a harmonia, a equidade, o comprometimento, e a mudança. Anunciar estes últimos valores, num sistema determinista é fazer exatamente o mesmo que os cães de Pavlov quando salivam no sino errado, é um perfeito disparate. Neste sistema não existe comprometimento de longo prazo, nem criatividade por parte das pessoas, porque o que se pretende é que as pessoas se comportem, da forma que é esperado que elas se comportem, o que se pretende é controlo e conformidade, com o apoio de modelos matemáticos, fórmulas algorítmicas e regras rígidas, toda a tecnologia que tem sido desenvolvida nos últimos anos tem sido no sentido de acelerar o ritmo de controlo e conformidade. Os códigos de conduta e ética não estão lá para dizer o que é que as pessoas podem fazer, eles estão lá para dizer o que elas não podem fazer, e quais os castigos aplicados para os casos de incumprimento. É mais uma forma de aumentar o controlo através do medo.

A palavra ética aqui empregue, não é a ética relativista, é a ética determinista do dono da empresa. Juan Enriquez, autor de vários livros, explica de uma forma brilhante o que é a ética, e o que ela representava. Para os escravos, no tempo da escravatura, ele faz referência ao livro sagrado, e diz “aqui estão algumas passagens de um dos livros sagrados “Escravos obedeçam aos vossos mestres com medo e tremor”, Ephesians 6:5, e esta ainda é a melhor “ digam aos escravos para serem submissos para com os seus mestres e para darem satisfação em qualquer assunto” Titus 2:09. “. Todos concordavam com isto na altura, isto era eticamente correto, ninguém questionava esta ética. Aliás, isto estava escrito nos livros sagrados, como é que podíamos questionar algo que era sagrado? Impossível. E isto é um passado recente na história da humanidade, portanto, não foi assim há tantos anos, é este sentido de ética que é apresentada nesses códigos.

E quanto mais tu aumentas o controlo, mais tu diminuis o quê? A liberdade, exatamente, a liberdade e a autonomia, deixas de ter liberdade para seres quem és, criativo, curioso, com vontade e alegria em aprender, e passas a comportar-te como o quê? Como um escravo, ou um Robô, e em muitos casos a única diferença é a forma de pagamento, o escravo era pago em géneros e tu és pago em espécie, porque continuamos a pensar de forma determinista. Warren Buffett, o maior investidor de todos os tempos, num dos seus discursos anuais disse que os erros mais importantes que ele cometeu ao  longo da sua carreira e que lhe custaram mais, foram erros de omissão, algo que ele devia ter feito e não fez, e ele teve coragem para assumir isso publicamente, o que é muito raro acontecer: o normal são os gestores, esconderem e omitirem esses erros, é por isso que os sistemas e as organizações não mudam, e não mudam precisamente porque temos gestores, não temos líderes. O que os Gestores pedem aos colaboradores de uma empresa não é coragem, é conformidade, “nós fazemos aquilo que nos disserem para  nós fazermos” e enquanto formos geridos por pessoas que só estão preocupadas em cumprir os seus objetivos pessoais, motivados de forma extrínseca, e que se conformam com o atual estado das organizações, do país, e do mundo, vamos continuar a assistir à aceleração das desigualdades sociais e ao empobrecimento da sociedade. Aliás, se olharem para todas as alterações que são feitas nas organizações, são no sentido de passarem a ter mais conformidade, mais controlo, e não menos. Porque o objetivo é manter as coisas como estão e isso só é possível dentro de uma visão determinista e autocrática da sociedade, onde as pessoas são vistas como peças substituíveis de uma máquina, em que o dono as pode substituir quando quiser, é o que acontece quando uma grande instituição apresenta lucros e rescinde contratos unilateralmente com os seus funcionários. Nestes casos o ambiente não serve para explicar nada e a única relação utilizada para justificar tudo é a relação causa-efeito. O problema é que se acreditarmos que tudo é relativo, e que existe propósito próprio e livre arbítrio, e que uma instituição não é um sistema mecânico mas sim um sistema social onde as suas partes têm propósitos próprios, e onde a relação causa-efeito é necessária mas não é suficiente, e onde o ambiente é fundamental para entendermos  a realidade, concordamos que numa sociedade em acelerado ritmo de mudança, tu nunca consegues manter o status quo, isso não é possível, porque o ambiente está constantemente a mudar, e quando a tecnologia está pronta a ser utilizada, o ambiente para o qual aquela tecnologia foi planeada já mudou. Manter o mesmo sistema, melhorando a componente tecnológica, é aumentar a eficiência daquilo que já está obsoleto, e o resultado, é ficar mais rapidamente obsoleto, porque depois insistimos em usar essa tecnologia por razões económicas e financeiras, e portanto, falar em “business as usual”, neste contexto, é um absurdo. Existem gestores que levam isto ao extremo e dizem aos seus colaboradores que estão proibidos de errar, é o mesmo que lhes dizerem que estão proibidos de aprender, porque é através do erro que tu mais aprendes.

Reparem  numa criança quando está a aprender a dar os primeiros passos, ela para aprender a andar, tem de errar, tem de cair, só assim ela aprende, tu podes ensinar-lhe o que quiseres, porque ela só aprende quando cair a primeira vez. Mas o que nós temos promovido, não é a aprendizagem, é o grau de conformidade, e quanto menos erros cometeres, maior será a conformidade, é por isso que muitos gestores defendem “0 erros”, isso provoca um estado de estagnação e atrofia no ser humano que faz com que ele se sinta sem autonomia para tomar decisões e sem energia para a ação, e dessa forma mais facilmente manipulável e controlável. Querer que seres humanos se comportem como Robôs ou escravos, em que a única coisa que lhes é pedida é que não cometam erros, que se conformem com o ritmo acelerado da mudança, sem questionar as posições de autoridade, que cumpram instruções sem autonomia, sem sentimento de pertença, onde trabalhar, 40 a 100 horas por semana é o exemplo a seguir, e é permitido por lei, sem terem diversão e prazer no trabalho que fazem, é altamente desmotivador, desmoralizador, e destrói por completo a psique humana, causando todo o tipo de patologias e psicopatias a que estamos habituados a assistir no nosso quotidiano. Isso tem provocado a proliferação de todo o tipo de doenças do foro mental, psicológico e físico, contribuindo para uma sociedade doente, e refém do “sistema de doença” Portanto, temos uma sociedade doente, muito preocupada com o tratamento de dados, com muita informação, algum conhecimento, muito pouco entendimento, e com nenhuma sabedoria. Isto é sustentável? Não. É por isso que não temos líderes, pessoas altruístas, corajosas, humildes, honestas, verdadeiras, que agem de acordo com aquilo que pensam e que sentem, com coragem de assumir publicamente as suas responsabilidades pelos erros de omissão, e de comissão, e o resultado é um sistema determinista, onde as pessoas não têm direito a ter propósito próprio, elas têm uma função que cumpre o propósito da organização, e isto, no longo prazo leva à alienação do trabalho e a todo o tipo de problemas psicológicos, mentais e físicos, causados pela supressão de emoções e sentimentos, e isto já começou a afetar as nossas crianças, e cada vez mais cedo as crianças estão a necessitar de apoio psicológico e psiquiátrico. Isto é o resultado deste sistema, desta forma de pensar. Não é normal crianças consideradas normais, de 4, 5 anos de idade, que não pertencem a famílias desestruturadas precisarem de apoio psicológico e psiquiátrico. Todos as pessoas que se encontram em posições de autoridade têm contribuído para esta realidade. O problema da guerra, da inflação, do preço do petróleo, e todos os outros problemas, são consequências “do problema”. São consequências da nossa forma determinista de pensar, da nossa forma de tratar os erros, das nossas crenças, dos nossos hábitos, no fundo, de tudo aquilo a que chamamos de cultura. As oportunidades de aprendizagem são incríveis, e se começarmos todos a tratar os erros de outra forma isso pode fazer toda a diferença. (Marco Garcia)




domingo, 15 de janeiro de 2023

A Transparência do Tempo (2019) de Leonardo Padura (crítica)



“Acreditar, ou querer viver a vida à margem da História, é um absurdo. Pensar que a História nos esqueceu equivale a ignorar que acima da nossa vontade, fazemos parte de uma realidade ingovernável que nos envolve. E pensar que nos salvaremos dela é impossível: não interessa que estejamos no que parece ser um meandro perdido da corrente, porque na altura de dilúvio tudo se inunda, tudo se agita e os caudais alteram-se”.


Após dois brilhantes artigos do Marco, regresso ao blog com uma crítica ao primeiro livro que li em 2023.

Já tinha, num artigo anterior, elogiado o cubano Leonardo Padura, e depois de em 2022 ter lido dois dos seus livros, resolvi começar o ano com uma fórmula que para mim é vencedora e ler outro dos seus livros, sendo que este (ao contrário dos anteriores que tinha lido) com o personagem principal mais icónico da sua produção literária: o detetive Mário Conde.


“A História demonstrava-lhe, dizia, que nunca nada fora melhor, que os fundamentalismos, a prepotência, a ânsia de poder e as infinitas estratégias utilizadas por alguns para enganar, explorar, governar e, fundamentalmente, foder os outros, eram atitudes omnipresentes desde o tempo das cavernas. Mesmo assim, às vezes sonhava com vagas possibilidades futuras que nunca se concretizavam, embora o fizessem aguentar-se.”


O livro começa com Conde, já na sua reforma e perto de fazer 60 anos, a ser abordado por um antigo colega de escola que pretendia contratar os seus serviços como detetive privado para recuperar uma Virgem negra. Esta estatueta de origem medieval foi palco de intensos planos narrativos em três momentos históricos distintos: no tempo das Cruzadas, na Idade Média; na sangrenta Guerra Civil Espanhola em 1936; e em Cuba em 2014. A Virgem de madeira, no que era suposto ser um policial, acaba por na escrita imaginativa e dinâmica de Padura, por colocar em diversos moldes choques de credos religiosos, a importância da preservação do património histórico, a ganância e corrupção da sociedade contemporânea, os fanatismos ideológicos (ponto esse em que Padura demostra que nas diferentes eras históricas os efeitos catastróficos dos mesmos), e em termos próprios do autor, numa descrição apurada sobre o Estado atual da História, a ressaca do mundo contemporânea e a falta de rumo coletivo da humanidade.


“Mas o que sei é que essa imagem talhada em madeira negra é uma obra humana, e, por isso, um símbolo para uma fé. Essa imagem foi criada por alguém com algum propósito. Um artista devoto esculpiu-a em madeira negra porque queria dizer alguma coisa nessa precisa cor; sentou-a numa cátedra porque queria representar o seu grande poder para os homens; deu-lhe cores e vida para a tornar mais próxima e mais transcendente, também mais bela... Quem a fez ou que a mandou fazer queria representar nela a origem de tudo, a terra onde cai a semente e nasce a vida, a mãe do redentor que pretendia fazer do mundo um lugar melhor. E acredito que alguém a trouxe até aqui por alguma razão ou porque significava alguma coisa, porque estava a salvá-la ou a esconde-la de algo. Não sei de quê, não posso sabê-lo, ou talvez saiba. Ela também o sabe... E talvez sejas tu o encarregado de a salvares novamente dos excessos humanos, que são infinitos e recorrentes. Não pelos seus milagres possíveis, nos quais podemos acreditar ou não, mas pelo milagre de ter existido e acompanhado os homens nos seus desassossegos durante tantos séculos. Uma testemunha do tempo. Esse é um motivo suficiente para cuidarmos dela e a protegermos.”


Não obstante, Padura modera o estado de espírito depressivo com momentos de humor negro deliciosos, pela caracterização de verdadeiros laços de amizade (que muita falta fazem num mundo cada vez mais solitário e isolado) e até na simples procura de elementos da vida reconfortantes


“...quando tantas coisas se desfaziam, ele tinha o privilégio de contar com amigos que o amavam e que ele também amava.”


“... a Internet só funcionava bem nos programas de televisão nacional (que Conde nunca via, porque na sua casa nem sequer havia televisor e ele já se maltratava o suficiente com o álcool para suportar também semelhantes agressões aos seus neurónios);”


Em jeito de crítica mais negativa, o policial de Padura (pelo menos esta obra) não tem o suspense de outros livros do mesmo género. Mas de certa forma, pela profundidade e temas que aborda, não termina como o típico policial em que tudo acaba bem para todos (menos para as vítimas). Isso acaba por ser uma coisa boa e realista na minha opinião: nem sempre o trabalho policial se faz naqueles termos glamorosos e inocentes, e nem sempre (e como bem descreveu o Marco aqui) a verdade é simples e pragmática como um raciocínio puramente matemático

Já incontornável nesta crítica é a relação do leitor com os personagens Padura já utilizou Mário Conde e os seus amigos/colegas em obras anteriores e por isso é difícil para o leitor estabelecer uma relação com muitos personagens sem conhecer previamente livros anteriores, nos quais esse aspeto certamente estará mais bem trabalhado.


Ainda assim, “A Transparência do Tempo” foi uma aposta certeira de leitura de início de ano. Tal com os anteriores livros que já falei de Leonardo Padura, fiquei com mais vontade de conhecer a sua bibliografia.


“Na realidade, as lições e leituras disponibilizadas pelo padre Joan só serviam para tornar mais satisfatórias as tarefas e, em certos casos, para ter a possibilidade de associar os assuntos da sua vida e da sua aldeia aos de outras vidas e sítios diferentes. E, às vezes, para o fazer sonhar.”


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

A Desumanização do Digital (Marco Garcia)

 


Prólogo: Na gíria futebolística costuma-se dizer que “equipa que ganha não se muda”.  O artigo anterior do Marco, com o qual simbolicamente terminei o ano de 2022 aqui no blog, teve níveis de visualizações estrondosos, batendo manifestamente o meu recorde de views aqui no blog. Estou muito feliz por saber que o Marco teve esse sucesso nesta minha humilde página e que esteja a sentir o prazer que é esta atividade maravilhosa da escrita. Por esse motivo, queria começar 2023 neste blog com um novo artigo que gentilmente o Marco preparou. Estou certo de que o leitor vai gostar. Como criador deste blog, sinto-me realizado em saber que criei aqui uma pequena comunidade que leva para casa interessantes reflexões de várias temáticas e que consegui, no caso do Marco, que ele desse o passo seguinte e arriscasse tornar públicas as suas reflexões de final de dia. Sem mais delongas, um novo texto do Marco. (Luís Araújo)

 

Existem pessoas que nos ensinaram a sermos quem somos, através de mensagens valiosas, que moldaram a nossa personalidade, e que ajudaram a construir a nossa mente. Eu apenas tento que essas mensagens e essas pessoas não fiquem esquecidas, e perdidas no tempo, porque são importantes para percebermos quem somos, de onde viemos, onde estamos, e para onde queremos ir, no fundo, para tentarmos perceber melhor o mundo em que vivemos, para aprendermos a viver melhor em sociedade. Isto são questões muito simples de fazer, mas muito difíceis de responder, e para as quais ainda não temos resposta. Isto porque, o mundo está em constante mudança, e quando pensamos que temos a resposta certa, tudo muda. Os maiores cientistas do século XIX, em meados do século, acreditavam que por volta de 1900 já teríamos o total entendimento do Universo. Mas entretanto, outras mentes brilhantes surgiram (como Einstein, Max Planck, Niels Bohr, Heisenberg, Bell, Marconi, Edison, Tesla,  entre muitos outros), para desafiar essa crença, e o que sabemos hoje é que o nosso conhecimento sobre todo o Universo é de apenas 6%, portanto, os cientistas não são melhores a fazer previsões do que os matemáticos, ou os economistas ou os juristas, e que o total entendimento do Universo, ou o entendimento de qualquer matéria ou assunto, é algo que nos vamos aproximando, mas que é impossível de alcançar.

 

Por esse motivo as posições de autoridade e poder são uma ilusão criada por pessoas que julgam estar numa melhor posição que todas as outras, mas isso não é verdade:  se conseguirmos entender isso, conseguimos colocar tudo em perspetiva, e conseguimos perceber que, existem pessoas que são muito menos do que aquilo que tentam parecer ser, e outras, que são muito mais do que aquilo que tentam parecer ser, independentemente da sua ideologia, riqueza, título ou cargo. Isso mantém-nos humildes acerca daquilo que somos, e essa humildade é importante para continuarmos a evoluir como espécie, e utilizarmos mais a nossa mente consciente.

 

Todos temos uma mente consciente, só temos de a querer usar, e é isso que têm feito os grandes pensadores ao longo da História. O professor Russell expandiu o nosso entendimento acerca da forma como tentamos entender os sistemas dos quais nós fazemos parte, e apresenta uma teoria inspiradora sobre a forma como nós os percecionamos: começa por definir uma máquina como um sistema que não tem propósito próprio, que tem uma função que é servir o propósito de alguma coisa externa, o seu “Deus”. O Universo era visto desta forma, mas também os primeiros negócios. Quem é o “Deus” dos primeiros negócios? O dono que os criou. Ele era presente e todo-poderoso, e não havia nenhuma lei que o impedisse de fazer o que ele quisesse, ele era “Deus”, e o negócio existia para servir os seus propósitos, ele não tinha propósito próprio. E qual era o seu propósito? Obter lucro. E então Milton Friedman, laureado com o Prémio Nobel da Economia em 1976, e que estava sempre atrás no tempo, chegou, e disse que a única legitimidade do negócio é o negócio. Isto é uma visão completamente mecânica e determinista de se ver um negócio, o negócio como uma máquina. O negócio é um instrumento dos seus donos, e a única responsabilidade do negócio é maximizar o valor da máquina para os seus acionistas, e Friedman, em 1970 num artigo que escreveu para o New York Times, sai-se com a maximização do valor para os acionistas, porque acreditava que se se distribuísse parte dos lucros pelos acionistas, estes fariam uma melhor utilização desse valor na sociedade do que se os distribuísse para a caridade. Já todos percebemos que isso não é verdade, e Oliver Hart, Prémio Nobel da Economia em 2016 acabou por reconhecer isso mesmo, e dá o exemplo de uma companhia que obtém lucros poluindo um lago.

 

Na visão de Friedman, a companhia devia poluir o lago, aumentar os lucros, e entregar os dividendos aos acionistas, e depois, se eles quisessem, eles podiam mandar limpar o lago. É assim que a maioria das nossas instituições são geridas atualmente, mas já percebemos que isso poderia ter um custo muito maior, se o lago não fosse poluído logo de início. Em conclusão, a ideia que o CEO deve preocupar-se apenas com o aumento dos lucros para os seus acionistas, está errada, aliás, se ele quiser ser leal para com os seus acionistas, que é aquilo que o dever fiduciário significa, ele deveria de lhes perguntar o que é que eles querem, isso seria a coisa leal a fazer, em vez de assumir que é obter lucro, às custas de tudo o resto (funcionários, clientes, fornecedores, ambiente, Estado e a sociedade em geral).

 

Agora, voltando á forma como tratamos os sistemas, quando Bertalanfy chegou com os seus papéis, ele disse que um organismo é um tipo diferente de sistema. É um sistema, mas é diferente. Porque um organismo tem propósitos próprios. Qual é o principal propósito de qualquer organismo? A sobrevivência. E para poder sobreviver tem de crescer. Então temos um sistema que procura a sobrevivência ou viabilidade, e o crescimento é visto como necessário, então onde se colocam as suas partes e os seus órgãos? Eles não têm qualquer propósito, têm uma função. Vejam o vosso coração, pulmões, o estômago e o pâncreas, têm funções, mas não propósitos próprios. É interessante olharmos para uma empresa depois da Primeira Grande Guerra. Antes, a maioria das empresas era detida por um único dono, ou uma família, e ele era “Deus”. Os sindicatos estavam a começar a aparecer apenas para desafiar o poder do dono, mas muitas coisas estavam a acontecer, nomeadamente a educação da força de trabalho. Em 1900 a literacia da população nos Estados Unidos, (o país mais evoluído do mundo contemporâneo), equivalia a 3 anos de escolaridade, mas no final da Primeira Guerra Mundial, passou para 8 anos, devido à educação pública.

 

Mas a questão crítica que ocorreu, e que produziu esta transformação, da maneira como olhamos para uma empresa, foi o facto de a economia dos Estados Unidos ser tão saudável que as oportunidades de crescimento excederam a quantidade de crescimento que as empresas conseguiam atingir, mesmo reinvestindo todos os seus lucros. Se uma empresa agarrasse em todos os seus proveitos e os reinvestisse no seu próprio crescimento, não conseguia crescer tão rápido quanto possível, e então o principal problema que o dono da empresa tinha era o de reter o controlo exclusivo, continuava a ser “Deus” e restringia o crescimento, ou partilhava o crescimento com outros contribuintes de capital, e deixava de restringir o crescimento. As companhias que sobreviveram abriram o seu capital ao público, por via das ações, todas as grandes corporações como a GE, abriram o seu capital ao público, ou seja, qualquer pessoa podia investir na empresa. As empresas aumentaram o capital para que pudessem crescer, e nesse processo, “Deus” desapareceu. Existe uma maravilhosa passagem no trabalho de Peter Drucker que reconhece isto. Ele disse: “Deus desapareceu, tornou-se um espírito abstrato por aí, e melhoramos uma instituição para facilitar a comunicação entre o homem e Deus, que são os acionistas, eles são o espírito abstrato”. Como é que os gestores sabem a vontade de “Deus”? Pela revelação. Mas o interessante é que toda a linguagem dos negócios se tornou biológica. O CEO da empresa passou a chamar-se como? The Head, a cabeça. A cabeça é um conceito, ou, se se preferir, uma noção biológica: nunca ouviram falar da cabeça de uma máquina! A firma era chamada de corporação. O que é que está na base da palavra corporação? Corpus ou corpo. Na Segunda Grande Guerra passamos por outras transformações nos Estados Unidos que impactaram o mundo inteiro, por uma série de razões, mas a principal foi esta: a força de trabalho foi arrastada para o esforço de guerra numa altura em que era preciso produzir armamento, mais do que nunca, quem é que foi chamado para as fábricas? Quais foram os substitutos? As mulheres, e aqueles que não podiam ir para a guerra. E foi a primeira vez que a força de trabalho não foi motivada economicamente, e porquê? A força de trabalho que queria trabalhar não o tinha de fazer para sobreviver, porque as famílias dos militares recebiam um subsídio pago pelo Estado que lhes permitia sobreviver acima do nível da pobreza, e foi a primeira força de trabalho em que isso aconteceu, e tiveram uma atitude diferente para com o trabalho. “Se querem que eu trabalhe, têm de me prestar atenção, eu não sou uma máquina que se pode usar e descartar quando quiser, quando não sirvo os propósitos, eu estou aqui por patriotismo, por uma causa nacional, e é bom que me prestem atenção. E pela primeira vez, a gestão teve de pensar na força de trabalho como seres humanos.

 

O que aconteceu a seguir à guerra, foram partes de sistemas que começaram a organizar-se para protestar da forma que o sistema os afetava, o sistema do qual eles faziam parte, eles diziam – “olha, eu tenho propósitos próprios e quero que prestes atenção a eles, e se não o fizeres, eu vou lixar-te”. Reconhecem isto? É claro que reconhecem. Isto foi o movimento anti racista, onde as minorias protestavam contra a forma como a sociedade estava a servir os seus interesses; foi o movimento de libertação das mulheres, onde as pessoas discriminadas pelo sexo protestavam com a sociedade pela forma como ela servia os seus interesses, foi o fosso geracional, foi o problema da alienação do trabalho, foram uma série de problema que ficaram sobre o nome de humanização, que tinha a ver com o facto da sociedade ter ficado ciente de que as pessoas empregadas eram seres humanos com propósitos próprios. Simultaneamente formaram-se grupos lá fora que protestavam sobre a forma como as organizações os afastavam: “têm de servir os meus propósitos melhor, senão eu meto-vos em trabalhos”, reconhecem isto? É claro que reconhecem, foi o movimento ecológico e o movimento dos consumidores. De repente os gestores de sistemas encontravam-se confrontados com 3 níveis de propósitos. O propósito da empresa ou do próprio organismo, o propósito das suas partes, e o propósito dos sistemas maiores do qual eles faziam parte, e de sistemas maiores nesse ambiente. E em nenhum destes níveis existiam objetivos compatíveis.

 

A natureza da gestão passou por uma mudança fundamental, e ainda não a apanhámos, o problema é que apanhou a gestão, porque continuam a gerir organismos biológicos, continuam a agir como se a instituição fosse um organismo. O que se passa é que existem sistemas que são máquinas, existem sistemas que são organismos, e existem sistemas, que são sistemas sociais. Não se trata as máquinas como se fossem organismos, mas trata-se os organismos como se fossem máquinas, fazemo-lo várias vezes, temos a tendência de tratar organismos como máquinas, e até mesmo sistemas sociais como máquinas: tem uma certa utilidade, mas não tem tanta utilidade como olhar para um sistema social, como um sistema social, e olhar para um organismo como um organismo, e olhar para uma máquina como um sistema mecânico, isso é uma das coisas que temos de aprender a fazer. Uma instituição é um sistema social porque é constituído por pessoas, e não podemos continuar a tratar as pessoas de uma forma orgânica como se elas fossem apenas uma função. O problema é que a tecnologia avançou, mas a mentalidade das pessoas permaneceu a mesma, devido à forma como desenhámos o ensino, a sua visão da natureza da realidade permaneceu a mesma, e estamos a tentar resolver os problemas da era digital, exatamente da mesma forma que tentámos  resolver na era na Revolução Industrial do século XIX, a única diferença é que, na Revolução Industrial estávamos a tentar substituir o músculo por máquinas, e na revolução digital, estamos a tentar substituir a mente humana pela mente digital, sistemas de inteligência artificial e robôs, mas estamos a fazê-lo exatamente da mesma forma . Estamos a criar linhas de montagem para executar trabalho mental, significa que aprendemos muito pouco acerca dos erros cometidos na Revolução Industrial, continuamos a utilizar a mente humana para fazer o trabalho que a mente digital ainda não consegue fazer, ou faz de uma forma mais dispendiosa, quando deveria ser precisamente o contrário, e estamos a reduzir a mente humana à mente digital, porque continuamos a pensar de forma analítica, algorítmica, ou, se se preferir, determinista. A ironia da revolução digital, é que, no esforço de libertarmos o homem da necessidade de executar trabalho mental, construímos cérebros digitais, que o fizessem por ele, analisamos as tarefas até aos seus elementos, para facilitar a digitalização, mas como nunca o conseguimos fazer totalmente, levámos o homem a comportar-se como um Robô, nós desumanizamos novamente o trabalho. Isso é a grande ironia da revolução digital, assim como já o tinha sido na Revolução Industrial, e isso tem estado a provocar a alienação do trabalho em números nunca vistos, provocando a proliferação de todos os problemas psicológicos, mentais e físicos a que temos assistido nos últimos anos. (Marco Garcia)