sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Como poeira ao vento” (2021) e “O homem que gostava de cães” (2013) – Leonardo Padura (crítica)

 



 

 

O que existe de fascinante em relação à arte é o fator que para além da sua natureza lúdica (o que é, aliás, a sua principal razão de ser), é ser, do mesmo modo, um poderoso instrumento/documento histórico: direta ou indiretamente reflete o estado de espírito do autor que, invariavelmente, nunca se separa integralmente do contexto em que viveu/vive e as grandes questões colocadas na sua época. Esse é o fator que mais me atrai ao romance histórico e aos clássicos da literatura: para além de um enredo mais ou menos fascinante (neste campo, no mundo da literatura, há conteúdo para todos os gostos), descreve muitos mais fatores. Como se costuma dizer, não podemos construir um futuro sem ter conhecimento sólido sobre o passado. Essa é, quiçá, a grande razão de ser da História.

Hoje o que me traz de novo ao blog é um escritor da atualidade, o cubano Leonardo Padura, crítico, mas não dissidente do seu país. Por sugestão de um comentador televisivo que publicitou os seus livros, resolvi dar uma chance, dado que até então conhecia pouco da literatura sul americana, tendo tido só um esporádico contacto com Jorge Amado e Gabriel Garcia Marquez.

Padura, no seu recente romance “Como poeira ao vento”, cujo título é inspirado nesta música, acompanha a evolução de um grupo de amigos cubanos que assistem aos anos finais da guerra fria e os desenvolvimentos históricos que aconteceram no país e levaram a uma separação do grupo. Uns ficaram em Cuba, outros foram para a Europa, outros arriscaram a travessia para os EUA, mas em comum com todos eles foi que na verdade o peso das nossas raízes é forte e apesar de cada qual viver em contextos político económicos diferentes, na verdade aquelas grandes questões da humanidade atual estão refletidas para todos, o que me leva a pensar que talvez não exista assim tanta diferença entre povos.

“-Aconteceu-nos tudo – continuou Bernardo, recusando-se a baixar o tom de voz - , e sem nos pedir licença. Os sonhos agora são insónias ou pesadelos. Aconteceu-nos termos perdido. Este é o destino de uma geração – sentenciou, recuperou o copo com uma mão já trémula e, de um gole, acabou a bebida. – E assim estamos companheiros, irmãos de luta: de derrota em derrota … Até à vitória final!”. Como poeira ao vento (2021)

Em “O homem que gostava de cães”, um romance ficcional sobre Ramon Mercader e Trótski, Padura faz uma enorme análise sobre a evolução dos vários momentos do século XX, passando pela tomada de poder de Estaline da URSS, a caótica guerra civil espanhola, o exílio e assassinato de Trótski, a segunda guerra mundial e os anos 60, 70 e 80 (o início do fim da guerra fria). Padura transmite a evolução do estado de espírito da humanidade, desde uma enorme euforia até uma fase de desencanto e descontentamento. Por isso os romances acabam por se complementar um e outro: “Como poeira ao vento” acompanha a sociedade do século XXI no rescaldo que foi o intenso século XX e uma certa falência/descrédito das ideologias e triunfos finais da humanidade, para uma humanidade que hoje está a acusar a ressaca de toda a nossa história recente e procura um novo rumo.

“A tão aguardada mudança de século e milénio passou e o mundo, transformado num sítio cada vez mais hostil, com mais guerras e bombas e fundamentalismos de todas as espécies (como era de esperar, depois de atravessar o século XX), acabou por ser tornar para mim num espaço alheio, repelente, com que fui cortando amarras, enquanto me deixava levar à deriva pelo ceticismo, a tristeza e a certeza de que a solidão e o desamparo mais absoluto espreitavam ao virar da esquina.” O homem que gostava de cães (2013). 

Padura consegue também, numa escrita acessível, mostrar traços das características atuais dos romances, mantendo sempre toda esta mensagem: uma escrita cativante, com suspense, crime, traços de sensualidade e emoções fortes que prendem o leitor do início ao fim.

Acredito piamente que Leonardo Padura é dos melhores escritores da atualidade e tenho fé que futuramente ganhará um prémio Nobel. Mas independentemente disso vejo nele potencial para que os seus romances venham a ser lidos daqui a 50 e 60 anos e conseguiram fornecer às próximas gerações informação preciosa de aquilo que está a ser a nossa vivência e os nossos gostos literários. Espero que a História faça essa justiça.

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