terça-feira, 25 de abril de 2023

1984, George Orwell (1949) – Crítica

 



“Nada existe senão através da consciência humana.”


Quero começar este artigo com uma partilha pessoal do ano letivo 2012/2013: estava eu no 12º ano no curso de Línguas e Humanidades, e desse ano houve dois professores e duas disciplinas que me marcaram: a primeira, sem surpresas, História A, que naquele ano focava o estudo da história entre a Primeira Guerra Mundial e a atualidade, e foi naquelas aulas que ouvi falar de Orwell e do livro que vou analisar neste artigo (e que só 10 anos depois li...), mencionado a propósito do estudos dos totalitarismos e dos estados totalitários do século XX; a segunda, Geografia C, que ao contrário da Geografia de 10º e 11º que foca atenção (quase) exclusivamente a Portugal,  trata da Geografia Humana à escala global na atualidade. Nesse ano, a avaliação de Geografia C era com base num teste e num trabalho e dado o programa e os meus interesses, as temáticas que mais gostei foram o Terceiro Mundo, os conflitos regionais e a geopolítica – aquilo a que chamo a “ação”, o verdadeiro campo de batalha do futuro da humanidade. Fiquei por isso aborrecido quando o tema do trabalho que me calhou no 3º Período foi “A Circulação Global da Informação”, que à época não me era tão apelativo e por isso tive uma nota um pouco mais baixa em comparação com os outros trabalhos. O professor até estranhou e disse que “não estava nos meus dias”.


“A guerra é uma forma de destroçar, ou lançar para a estratosfera, ou afundar nas profundezas do mar, materiais que de outro modo poderiam ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e, por conseguinte, a longo prazo, demasiado inteligentes.”


Hoje penso o mundo de forma diferente, e dou muito mais relevância ao tema da circulação da informação. Claro, os conflitos regionais continuam a interessar-me: basta ver o histórico de artigos deste blog onde já falei da Guiné-Conacri e sobretudo do Congo, sendo que estes dias estou também a acompanhar com preocupação à escalada de violência em Cartum no Sudão. Mas, tentando fazer justiça ao que não fiz em 2013, convido o leitor a acompanhar-me nesta crítica ao 1984, em que quero no focar na circulação, uso e tratamento da informação, bem como a sua relevância para o futuro da humanidade.


“o assustador era que tudo aquilo pudesse ser verdade. Se o Partido fosse capaz de intrometer a mão no passado e dizer tal nunca aconteceu a respeito deste ou daquele acontecimento, não seria isso mais aterrador do que a tortura e a morte?”


1984 é um livro assustador. Cada vez mais atual, retrata o percurso do ficcional Winston Smith numa sociedade em que contrariamente às aspirações positivistas e ideológicas do séc XIX e inícios de séc XX, não se criou uma sociedade perfeita mas sim uma ditadura perfeita: retrata uma sociedade que controla o indivíduo desde uma perspetiva externa (ação) até à componente interna (espírito); uma sociedade que perpétua as desigualdades sociais, promovendo o distanciamento entre a classe governante e a maioria da população; uma sociedade que altera o passado e a sua história conforme as conveniências do presente; uma sociedade que pretende criar uma nova língua de modo a moldar (mais ainda) o modo de pensar dos cidadãos; e, em última instância, uma sociedade que se não assente na obediência cega, assenta no medo e no horror. Winston ao longo da narrativa e nas 3 partes que compõem o livro vai sentindo o peso de tudo isto, começando na primeira parte com uma sensação de desconforto, passando para uma segunda parte para uma sensação de desafio à ordem estabelecida e terminando na terceira parte numa situação de castigo e repressão no eufemisticamente denominado “Ministério do Amor”. Por toda a parte a ação é acompanhada pela misteriosa figura do Big Brother, o Grande Irmão, ao qual ninguém escapa ao olhar atento.


“Sabemos que ninguém toma o poder com a intenção de abdicar dele. O poder não é um meio, é um fim. Não se institui uma ditadura para salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para instituir a ditadura. O objetivo da perseguição é perseguir. O objetivo da tortura é torturar. O objetivo do poder é ter poder.”


Nos romances que mais leio e trago ao blog, utilizo o passado como modo de entender o presente ou o passado mais recente, daí o meu particular gosto pela literatura do séc. XIX. Nesta distopia de Orwell, escrita em pleno século XX sinto que a cada ano que passa o livro vai ficando mais atual. Basta fazermos esta simples reflexão: as bases de dados informáticas sabem mais sobre nós do que a nossa família. Hoje não é concebível uma sociedade sem o acesso à Internet e, apesar de não acreditar numa figura central do Big Brother a olhar sobre nós, será que a nossa sociedade não está a passos largos a concretizar as profecias de Orwell? No trabalho que falei supra de Geografia C, abordei a temática das assimetrias regionais no acesso à informação – agora vou um pouco mais além, deixando um conjunto de perguntas: como estamos a tratar a informação? Será que temos dificuldades em aceitar a nossa história? Não temos a tentação de descrever os acontecimentos de forma que mais nos convém, mesmo que o resultado seja um todo absolutamente incoerente? E o que dizem ainda da alteração da língua?


“A invenção da imprensa, contudo, facilitou a manipulação da opinião pública, tendo o cinema e a rádio aprofundado esse processo. Com o advento da televisão e do avanço técnico que permitiu receber e transmitir em simultâneo e no mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim.”


Muitas vezes nós olhamos para filmes, séries e conteúdo, e sem recuar muito tempo, dizemos “Se fosse hoje, isto não seria feito”. E derivado do modo de ver a sociedade, entendo porque algumas pessoas têm receio e recusam o meu convite para participar neste blog. Dar a opinião é muitas vezes uma forte demonstração de coragem, mas é acima de tudo algo que nos deve ser muito querido e que devemos estimular, que é a nossa demonstração de liberdade! Por isso publico este artigo neste simbólico dia da História de Portugal para que esta pequena comunidade de leitores leve ao fim do dia algo para refletir.


Termino este artigo com uma saudação particular ao Honroso e Distinto Caaaaarliiinhos que gentilmente me emprestou esta magnífico livro que recomendo a leitura.


sexta-feira, 21 de abril de 2023

Boas métricas criam bons ambientes (Marco Garcia)

 



Prólogo: George Orwell na sua obra-prima “1984” oportunamente escreveu que quem controla o passado, controla o futuro e quem controla o presente, controla o passado. Cada vez mais vemos isso na nossa sociedade em vários campos sendo que as métricas e os números são por excelências um dos principais instrumentos de controlo da informação. Sabemos por isso o que implica controlar a informação, mas o que significa na prática o controlo de certo tipo de informação num determinado contexto? O novo artigo do Marco procura responder a essa questão, com a sua visão de gestor, para o campo profissional e pessoal. Sem mais demoras, novo artigo do Marco. (Luís Araújo).

  Os números são importantes, e boas métricas criam bons ambientes, mas querer avaliar comportamentos ou desempenhos humanos com base em números não só é desastroso e ineficiente, como também é imoral, e é precisamente para esse facto que eu quero chamar a vossa atenção. O Dr Spitzer refere que “as pessoas odeiam ser avaliadas porque normalmente as avaliações são usadas contra elas, mas as métricas são importantes, porque aquilo que tu medes, é aquilo que tu obténs”. Todas as organizações são baseadas em métricas, mas têm de perceber que se medirem as coisas erradas, vão obter as coisas erradas. Primeiro temos de perceber o que significa envolvimento, porquê que mais de 69% das pessoas empregadas não se envolvem no seu trabalho, e cerca de 80% dos colaboradores acreditam que trabalham para uma instituição que não cuida deles. Um dos motivos, tem a ver com o sistema de medição. Eu tenho de entender como funciona esse sistema, tenho de pensar no que vou medir, e se isso é correto medir. 
O fundamental é colocar as pessoas a fazer as perguntas certas acerca das medições. Existe uma coisa que temos de entender sempre que falamos em medições, eu posso provar aquilo que eu quiser, utilizando dados, basta apenas selecionar os dados que provam aquilo que eu quero, e isso é feito por quase todas as organizações. Funciona como um truque de magia, onde o mágico desvia a tua atenção para o que ele quer que tu vejas, e é precisamente isso que se passa hoje em dia nas nossas organizações: os gestores só te mostram os números que eles querem que tu vejas, daí ser tão difícil investir nas organizações hoje em dia, tu não consegues confiar nos números, porque, por detrás desses números estão pessoas, pessoas que tu não conheces, não conheces as suas crenças, o seu propósito de vida, o seu estilo de vida, os seus valores, os seus hábitos e costumes, e que são responsáveis por apresentarem esses números, tu só sabes o que elas querem que tu saibas, que é muito pouco, não sabes o suficiente para confiares nelas, e todos nós já percebemos que esses números tentam criar uma ilusão, que é precisamente o que se passa com os números de magia, tu não consegues entender como  eles o fazem, mas acreditas no que vês. O papel do mágico é ludibriar o público criando uma ilusão, assim como o papel do gestor, é compor os números de forma que pareça tudo bem. Com esta mentalidade de curto prazo, manipulando os números e as medições, é impossível confiar nesses números, é impossível investir nas empresas e nas organizações a longo prazo, 30, 40 anos ou mais.

Agora, existem 4 pontos chave que fazem as medições, e que fazem a gestão serem bem-sucedidas. O primeiro é o foco: tu tens de te focar naquilo que é correto, e existem tantas coisas corretas nas quais te podes focar, a chave é fazer as perguntas certas. Eu tenho de perguntar o que é mais importante para a minha eficácia na organização. A segunda coisa é a integração: todas as organizações são uma combinação de muitas partes diferentes, e portanto, temos de ter a certeza que estamos a focar-nos naquilo que é correto, e saber se essas coisas estão integradas, e interligadas. Uma das coisas que deves ter em consideração é que uma organização é composta por 20 ou 30 funções diferentes, e cada uma dessas funções tem as suas próprias métricas, e na maioria das organizações, essas métricas não estão relacionadas entre si, e isso é errado, isso é anti sistémico. Não existe integração do sistema de medição, e isso causa muitos problemas. A terceira é a interatividade, ou seja, como é que transformas os dados em informação. Porque o que tu obténs são números, e de seguida tens de dar significado a esses números, e podes colocá-los num gráfico para obteres informação, mas mesmo a informação não é suficiente, tens de transformar essa informação em conhecimento, e esse conhecimento em entendimento, até conseguires relacionar todos esses conceitos de forma a obteres sabedoria no longo prazo. Temos de entender que toda a informação, se for mal utilizada, transforma-se em desinformação, e temos de ter muito cuidado com isso. O nosso problema atualmente é que estamos fixados em obter dados e informação sem contexto, ou fora de contexto. E o quarto fator é o contexto: se não quisermos saber a verdade, e se não gostamos das métricas, então vamos tentar manipular essas métricas a nosso favor. Todos nós já fomos vítimas das avaliações de desempenho (desde a escola ao mercado de trabalho), e essa informação pode ser muito útil, mas normalmente é utilizada contra as pessoas. As avaliações de desempenho normalmente têm mais a ver com a personalidade da pessoa que faz a avaliação, do que com o próprio avaliado. Existe uma grande diferença entre métrica e avaliação. A palavra avaliação significa colocar um valor em alguém ou algo, então o que normalmente se faz é julgar o valor das pessoas: isso é errado, é anti-ético! Mas por detrás desses julgamentos de valor, não existem boas métricas, por isso, se olharem para as métricas que estão na base desses julgamentos, não são corretas, não o podem ser, porque estão a medir o que é errado, e quanto mais corretamente eu medir o que é errado, mais errado vou ficando. O genocídio é uma coisa errada de se fazer, mas eu posso fazê-lo muito corretamente, por isso, é preferível errar a fazer o que é correto, do que fazer corretamente o que é errado, a primeira tem a ver com valores, e a segunda com resultados. As avaliações de desempenho estão a avaliar resultados individuais de pessoas, e isso é errado, porque ninguém trabalha de forma individual, o teu trabalho depende do trabalho de outras pessoas, depende da forma como elas colaboram e se relacionam, depende da forma como todo o sistema está desenhado e interligado, o teu desempenho está dependente do sistema, e do ambiente onde trabalhas, tu não trabalhas num vácuo. O que eu quero que compreendam é que as avaliações podem ser bem vistas, desde que tenham por base boas métricas, e que estejam a avaliar processos e procedimentos, e não pessoas, com base em resultados individuais, portanto, temos de nos focar é nessas métricas que avaliam os processos e procedimentos de forma a melhorá-los e torná-los mais eficazes. 

Agora, existem dois tipos de métricas: uma é a tradicional, que avalia as pessoas individualmente e é composta normalmente por monitorar, reportar, controlar, justificar, julgar, promover, castigar e recompensar, e é normalmente para isso que utilizamos as métricas. Essa é uma das razões pelas quais as métricas recebem uma conotação tão negativa junto das pessoas, é por isso que as pessoas são tão defensivas acerca das métricas. No entanto existe um outro tipo de métrica que o Dr Spitzer chama de métricas positivas, que avalia os procedimentos e os processos, ajudando na criação de valor, e utiliza as avaliações para aumentar a visibilidade, a curiosidade,  para melhorar a comunicação e interligação entre as várias partes, para melhorar o feedback, para promover entendimento, para nos ajudar a prever o futuro, para aprendermos, para melhorarmos os processos, para  termos alegria e orgulho naquilo que fazemos, e encontrarmos satisfação no trabalho, de forma a promovermos uma prestação de contas positiva. Este modelo avalia os bons procedimentos e aqueles que podiam ser melhores, não avalia pessoas, nem julga pessoas. Infelizmente hoje em dia quase nenhuma organização utiliza este tipo de métricas, mas sim o modelo tradicional de medição. Portanto, o foco, a integração, a interatividade, e o contexto, são essenciais. 
O contexto das medições precisa ser positivo se as pessoas o vão usar corretamente e aprender com ele, porque o propósito das métricas deveria ser aprender e melhorar, não deveria ser monitorar e controlar pessoas. Temos  de confiar nas nossas pessoas, se não confiarmos nas nossas pessoas, aquelas que contratámos, segundo os nossos critérios, não confiamos em ninguém, e quem não confia, não é digno de confiança, e as pessoas que estão a ser monitoradas e controladas sentem que não confiam nelas, e sentem que não podem confiar nas pessoas que as controlam, porque têm algo que se chama, sentimentos e emoções, e como diz o povo “quem não se sente, não é filho de boa gente”. Aqueles que aceitam todo o tipo de faltas de respeito, abusos, e agressões psicológicas, e compactuam com os agressores, estão a contribuir para o aumento do cinismo e hipocrisia no local de trabalho, e o resultado é teres um conjunto de pessoas a trabalharem juntas, completamente alienadas, centradas nelas próprias, oportunistas, que só colaboram por interesse, que não confiam umas nas outras, a digladiarem-se diariamente como se estivessem numa arena, a trabalharem num ambiente altamente tóxico, desfuncional, regulamentado, monitorado e controlado, com os gestores de topo a apoiarem, a participarem, e a apreciarem de camarote este espetáculo decadente , como se tratasse de “business as usual”. É neste tipo de ambiente que queremos colocar os nossos filhos e filhas queridas? É neste tipo de ambiente que queremos que a nossa querida Mãe e o nosso querido Pai trabalhem? É neste tipo de ambiente que queremos que a nossa querida Avó e o nosso querido Avô trabalhem? É neste tipo de ambiente que queremos que todas as nossas pessoas queridas que nós amamos trabalhem? 

O problema é que as pessoas não sabem aquilo que querem, e durante todos estes anos têm sido motivadas pelo medo, pelo dinheiro e posição, a preocupação é o ter, e parecer bem, se soubessem o que queriam, uniam-se em torno de uma ideia mobilizadora, e não permitiam estes atentados à humanidade, que afetam todas as nossas pessoas queridas, as pessoas que nós amamos, as pessoas que nos amam incondicionalmente. A organização são todas as pessoas, independentemente do seu título ou cargo. A organização não é o CEO. O “ser” é mais importante que o “ter”. Temos de nos preparar para o legado que vamos deixar às gerações futuras. Foi este sentimento que mobilizou os nossos antepassados, e é com este sentimento que temos de continuar a trabalhar todos os dias para nos tornarmos pessoas melhores, fazendo o que é correto, ajudando a criar uma sociedade baseada em valores, e não em resultados.  

Acima falávamos de envolvimento dos colaboradores, e que o modelo tradicional de medição está a tentar fazer, é  criar o envolvimento dos colaboradores num contexto negativo, portanto, nós damos às pessoas alguns  benefícios, mas fazemo-lo num contexto tão negativo, que muitas daquelas coisas que falámos, já fazem parte da cultura. Quando temos um ambiente de monitorização, controlo, reporte, recompensas e castigos intrigantes, até mesmo as recompensas são manipuladas na sua natureza mais básica: Por isso o que nós precisamos é de uma cultura onde as pessoas queiram aprender e melhorar, e se nós conseguirmos criar isso, seria muito positivo, não só para as organizações, mas para a sociedade em geral. A chave está em criar ambientes positivos nas organizações, e para que isso aconteça temos de aprender algo acerca das pessoas, saber como funciona a sua mente, porque, muito do trabalho que desempenhamos hoje em dia é mental. Uma das características fundamentais da nossa mente, são as nossas emoções e os nossos sentimentos, e só recentemente começámos a equacionar essa possibilidade. Todo o século XX foi ocupado com o estudo do raciocino, porque pensávamos que era isso que nos distinguia dos restantes seres vivos, e criámos  uma inteligência artificial com base no raciocínio, que de inteligente não tem nada, é pura manipulação de símbolos com base em regras algorítmicas e lógicas, porque, mais uma vez acreditámos e assumimos erradamente que já sabíamos tudo acerca da mente e que a função da mente era, pura manipulação de símbolos, mas hoje em dia, com o desenvolvimento da  neurociência, da epigenética, da psiconeuroimunologia, da neuroendocrinologia e da física quântica, já percebemos que isso não é verdade, e que a inteligência artificial, não é inteligente, mas é artificial, e se queremos entender algo acerca da inteligência humana, temos de entender os circuitos responsáveis pelas nossas emoções e sentimentos, temos de perceber como funciona o sistema nervoso central, e como ele se interliga e relaciona com o nosso corpo físico. Tudo isto contribui para a formação da nossa mente consciente.

Um dos primeiros grandes mestres a promover a cultura de melhoria e aprendizagem, ao invés da cultura do castigo e da recompensa, foi Jesus Cristo há mais de 2000 anos atrás. A única coisa que Jesus pretendia, era que os seus discípulos aprendessem e melhorassem para se tornarem pessoas melhores. A Bíblia fala de recompensa e castigo logo no início, com Adão e Eva, mas Jesus veio revolucionar este conceito, e ao invés de criar uma cultura baseada no castigo e na recompensa, ele criou uma cultura baseada na melhoria, no desenvolvimento, e na aprendizagem. Em vez de coisas como, o empregado do mês, deveríamos ter algo como, “as ideias do mês ou as boas ações do mês, as boas atitudes do mês”, baseadas em valores, e não em números. As pessoas devem ser celebradas pelas suas boas ações, não devem ser castigadas pelos números, os números têm de ser o resultado dos valores, não podem ser construídos á custa dos valores. Outro problema, é que os nossos gestores ficam satisfeitos  com números baixos, muito baixos, e as nossas empresas, as nossas organizações não conseguem ganhar escala, nem dimensão internacional, não conseguem competir com as maiores e melhores do mundo, e não é a cortar custos, nem a trabalhar mais horas ou mais rápido que isso se consegue, isso é o que temos feito nos últimos 20 anos, e não tem resultado, isso só se consegue redesenhando todo o sistema, de forma a  trabalharmos de forma mais eficaz, fazendo aquilo que é correto, e para fazermos o que é correto, temos de perceber algo acerca das pessoas. Ao contrário do que muitos pensam, nós não somos um país pequeno, e se efetivamente queremos tirar o melhor rendimento das pessoas, temos de fazer mudanças estruturais, e temos de começar a olhar para aquilo que as pessoas têm de bom, não para o que têm de mau, temos de saber algo acerca das pessoas, algo acerca dos seus valores, das suas crenças, dos seus sentimentos e emoções, e uma das coisas que precisamos saber, é aquilo que as motiva. “O reino de Deus está dentro de ti - Lucas (17:21) citado por Lev Tolstoi.


domingo, 9 de abril de 2023

Parte II – Os Miseráveis, Victor Hugo (1862) – Crítica

 



Frequentemente quando falo no blog com pessoas conhecidas dizem-me que os artigos do Marco são muito diferentes dos meus. E com razão, por dois motivos: o primeiro, porque vimos de meios diferentes e temos uma base de formação diferente; o segundo, e o mais evidente, é porque eu não tenho os anos de experiência profissional e de vida que o Marco tem. Se é verdade que o tempo não volta atrás, é igualmente verdade que não se pode comprar experiência, e há aprendizagens na vida que somente com o decurso do tempo se consegue alcançar.


“Morrer não custa nada; o terrível é não viver.”.


Senti isto com Victor Hugo: um livro funciona como retrato do modo de pensar e personalidade do escritor numa determinada fase da vida e num determinado tempo. Por isso, contrariamente a Nossa Senhora de Paris (que critiquei oportunamente aqui), n’os Miseráveis Victor Hugo mostra um nível de maturidade e de experiência de vida que não o podia ter feito na década de 30 do século XIX.


“Esta época há de passar e já está a passar: começamos a compreender que, se pode haver força numa caldeira, só pode haver poder num cérebro; dito noutros termos, não são as locomotivas que levam e arrastam o mudo: são as ideias.”.


Na parte I (disponível aqui) coloquei a questão sobre o que é a miséria humana. É algo que temos como garantido na vida, o sofrimento, e é frequente fazermos o exercício de comparar sofrimentos de uns com outros. O que senti precisamente nesta obra é que a resposta à questão sobre o que é o miséria humana faz-se sentir em incidências diferentes, de modos diferentes e em pessoas de classes sociais diferentes: a resposta a esta questão pode estar nas enormes desigualdades sociais e na pobreza extrema de dois órfãos parisienses que procuram num pedaço de brioche atirado ao lago do jardim do Luxemburgo algo que fosse para matar a fome; mas a resposta pode também estar no coração partido de um avô que quer voltar a reconciliar-se com o neto mas tarda em ganhar coragem para dar o passo necessário; e o que dizem também das emoções do amor de Marius e Cosette, que oscila entre momentos de euforia e desespero, tão próprio deste sentimento? Ou ainda em Jean Valjean, cujo peso de um passado cruel e injusto vem ainda acrescentar a solidão própria de um pai que educa uma pequena menina como filha e a vê partir da sua asa? E o que dizer ainda de Thernardier, o burguês falido cuja baixeza patrimonial é somente equiparada com a baixeza de caráter?


“O amor quase substitui o pensamento. O amor é um ardente esquecimento de tudo o mais. Quem é que pode pedir lógica à paixão? Não há encadeamento lógico absoluto no coração humano, como também não há figura geométrica perfeita na mecânica celeste.”.


No primeiro artigo, dei ainda destaque ao polícia fanático Javert, o qual após os acontecimentos tumultuosos em Paris no verão de 1832 e um novo confronto com Jean Valjean, tem um desfecho absolutamente surpreendente. Na verdade, Javert inicialmente foi caracterizado pela mente rígida e inflexível: nesta última parte da obra, em poucas páginas e em moldes absolutamente surpreendentes, Victor Hugo faz o leitor sentir empatia por este personagem que pela primeira vez na vida é esmagado pelo peso da consciência e é obrigado a refletir sobre o seu papel na sociedade enquanto figura de autoridade.


“O destino tem certos extremos que raiam o impossível e além dos quais a vida é um precipício. Javert estava num desses extremos. Uma das suas ansiedades era ser forçado a pensar. A própria violência de todas essas emoções contraditórias obrigava-o a fazê-lo. Pensar era, para ele, uma atividade inusitada e singularmente dolorosa.”.


Tanta coisa pode ser dita sobre esta obra magnifica. Em termos similares (embora com algumas diferenças) como Tolstoi escreve o Guerra e Paz, Victor Hugo, ao tempo com 60 anos, mostra com uma maturidade e enorme sabedoria que a experiência de vida numa França novecentista lhe deu refletir sobre temáticas acessórias mas complementares, desde o significado do uso do calão pelas classes que mais sofrem, à importância da conservação da identidade urbanística de uma cidade, a (i)racionalidade do aproveitamento e reaproveitamento de recursos, e, como quero destacar neste artigo, uma questão intemporal e muito relevante para os dias de hoje: como alcançar a prosperidade social? Foi na época da vida de Victor Hugo que serviu de advento às ideias política e suas interpretações que moldam (pelo menos ideologicamente), os partidos políticos da atualidade. Não tenciono no blog fazer comentário político ao Portugal de hoje, dado que a minha ideia com esta página é a de criar um espaço em que as pessoas possam livremente escrever e refletir e com base nisso tirar as suas conclusões. Mas não resisto em deixar no ar esta pergunta: qual o partido que se assume frontal e diretamente contra a prosperidade social? Deixo a minha resposta: nenhum. Cada qual, pelo menos ideologicamente, tenta caminhos diferentes para alcançar o mesmo objetivo.


"Uma das dolorosas ansiedades do pensador é ver planar a sombra sobre a alma humana e sentir nas trevas o progresso adormecido sem o poder despertar.”.


A segunda parte da obra nesta edição da RELÓGIO D’ÁGUA completa o terceiro livro, com o nome de Marius, o quarto livro que é o único que não tem o nome de um personagem e onde Victor Hugo começa a fechar a história, e o quinto e último livro com o nome do personagem principal: Jean Valjean. Pelo número de temáticas que aborda e pelo volume total da obra, este livro exige algum tempo de dedicação, e a compreensão implica alguma pesquisa sobre a História de França. É, tal como o Nossa Senhora de Paris, um livro que exige alguma força de vontade dado não ser uma obra que se consiga ganhar afinidade com os personagens nas primeiras páginas. Isso não quer dizer que não se chegue lá: aliás, os Miseráveis têm pelo menos 60 adaptações ao cinema, o que prova o cuidado e a capacidade que a escrita de Victor Hugo tem em agarrar o leitor ao enredo.


Disse na Parte I que estava a ler uma obra-prima: e agora volto a dizer e confirmo. Os Miseráveis, por tudo o que aborda, pelo seu emocionante enredo (sobretudo o seu final que é uma verdadeira montanha-russa de emoções), por Victor Hugo ter conseguido transmitir toda a mensagem que tinha em mente – é um livro absolutamente excecional e que recomendo vivamente!


“São estas as verdadeiras felicidades. Não há alegria sem estas alegrias. O amor é o único êxtase. Tudo o resto chora. Basta amar ou ser amado. Não peçam mais nada depois. É esta a única pérola que podemos encontrar nos caminhos tenebrosos da vida. Amar é uma consumação”.