segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Crítica a Notre Dame de Paris (Nossa Senhora de Paris) – Victor Hugo (1831)


 


“A porta continuou cerrada e o tablado vazio. Desde a manhã que a turba esperava por três coisas: o meio-dia, a embaixada da Flandres e o mistério. Só o meio-dia chegara a horas”

 

Nesta minha segunda leitura e crítica do ano, aventuro-me sobre um clássico da literatura mundial do francês Victor Hugo, por recomendação do meu tio.

Mais conhecido como “O Corcunda de Notre Dame” (versão pela qual o livro ficou conhecido no meio literário anglo saxónico), Nossa Senhora de Paris é uma soberba experiência literária, já diversas vezes adaptada ao cinema, sendo a mais conhecida (pelo menos para pessoas da minha geração) a adaptação ao cinema da Disney. O livro, contudo, tem diferenças substanciais.

Como o nome indica, a ação passa na parte final da Idade Média em Paris, em torno da mítica catedral de Notre Dame. Numa altura em que se começava a eclipsar o modelo de sociedade feudal para uma maior tentativa de centralização do poder político, nas ruas de Paris ainda se faziam sentir as diferenças estruturais das várias estruturas de poder regionais medievais (sejam senhores feudais, seja uma comunidade bairrista de ciganos), uma tensão que vai ser fulcral para o desenrolar da história. Ao mesmo tempo, Victor Hugo, claramente apreciador do estilo arquitetónico gótico, toma da majestosa catedral parisiense como um símbolo da história, fazendo uma crítica urbanística para o seu tempo (o século XIX) que ainda hoje é muito atual: em tempos mais antigos da história, onde a impressa e a difusão da informação não estavam em patamares como os conhecemos hoje, a arquitetura das cidades era mais do que um padrão estético, representa um precioso documento histórico de uma determinada era. O estilo gótico representa isso mesmo, uma transição de uma arquitetura românica com os edifícios mais preparados para as guerras que devastaram a Europa por muitos séculos após a queda de Roma, para uma era de rescaldo, maior pacificação e recuperação da sociedade. O estilo gótico representa isso e muito mais: representa também, como toda a arquitetura e precioso património histórico (que nem sempre apreciamos ou tiramos o devido tempo para o observar) de absorver a mensagem que ele quis transmitir para as gerações futuras. A igreja, como marco de uma era onde a Igreja Católica assumia um papel de relevo central na Europa medieval; e uma preocupação daquelas gerações em deixar para as gerações futuras um legado daquilo que foi o seu tempo. Hoje muitas vezes olhamos para as modernas cidades (inclusive as portuguesas) e observamos uma crescente perda de identidade e constante alteração paisagística substancial, por vezes tremendos atentados ao urbanismo e ao belo que facilmente o leitor consegue encontrar casos.

É em torno desta majestosa catedral, que Victor Hugo criou um plano narrativo com alguns dos personagens mais icónicos: a bela Esmeralda, bailarina cigana que encanta o coração de muitos homens; Cláudio Frollo, o austero clérigo que sucumbe aos desejos mais primitivos; Quasímodo, o Corcunda disforme, cego de um olho, de aparência assustador e , a partir de certo momento da sua vida, surdo; Pedro Gringoire, o filósofo envolvido em confusão; e Febo, o capitão envolvido em dilemas e mexericos da alta sociedade.

“Achava o poeta que não havia nada melhor para dissipar a melancolia do que o espetáculo dum processo criminal, a tal ponto o juízes são, em geral, dotados de uma divertida estupidez.”

O livro começa simbolicamente no julgamento de Quasímodo, que é demonstrativo do soberbo (mas sombrio) sentido de humor do autor, com o momento caricato de colocar um auditor surdo a interrogar outro surdo, e sem ouvir e sem um e outro entenderem o que ambos estavam a falar, tomou a decisão judicial e proferiu a sentença, mostrando ao extremo a sátira que por vezes é a aplicação da justiça.

“Ora o auditor era surdo. Leve defeito para um auditor. Nem por isso mestre Florian deixava de julgar inapelavelmente e com muita congruência. É verdade que ao juiz basta dar a impressão de escutar, e o venerável auditor satisfazia tanto melhor essa condição, a única essência de uma justiça equitativa, quanto era certo que nenhum ruído poder distrai-lo.”

“Assim, bem ruminada o processo de Quasímodo, o auditor deitou a cabeça para trás e fechou um pouco os olhos, para se dar ares de maior majestade e imparcialidade; fê-lo tão bem que nessa altura ficou surdo e cego. Dupla condição sem a qual não há um juiz perfeito.”

É nesta sociedade caricata, divertida e surreal, que o final do livro termina tragicamente: com a execução de uma pessoa inocente, uma tremenda falta de comunicação entre a corte da época, o clero e Quasímodo (sendo o final, por isso diferente do filme da Disney que termina com final feliz).

O Victor Hugo na sua narrativa oscila muito em momentos de comédia e tragédia, acontecendo quase de uma linha para a outra, tendo um sentido de humor claramente peculiar. Recordo-me de há uns anos, num contexto de videojogo que um personagem ter dito algo como “Por vezes, o universo tem um estranho sentido de humor”. Acho que essa citação é perfeitamente apurada para a descrição do autor desta obra.

A grande dificuldade de Nossa Senhora de Paris é o chamado “Pacing”. A introdução é um pouco lenta e os personagens são introduzidos muito mais tardiamente que o habitual no plano narrativo, sendo que não é um livro que se consiga ganhar afinidade com os personagens ao fim de 50 páginas. Mas isso não quer dizer que Victor Hugo não tenha logrado nessa tarefa: alias, se não o tivesse conseguido, muito dificilmente a obra teria sido objeto de tantas adaptações ao teatro e cinema que conhecemos!

No entanto, o livro é também extremamente pedagógico, não só pelas questões da preservação do património como falei supra, mas também na caracterização da sociedade. Em jeito de exemplo, aprendi no livro que a palavra “Gypsy” é um diminutivo Inglês de “Egypcy” sendo cigano a tradução do eslavo da palavra egípcio como diminutivo. Por esse motivo na comunidade cigana os líderes da época eram geralmente conhecidos como duques ou príncipes do Egito, sendo que na descrição daquele povo o autor varia entre a palavra cigano e egípcio.

A escrita do livro é acessível, apesar de por vezes ser densa e ser necessário nas primeiras páginas alguma força de vontade do leitor para conhecer esta magnifica história. Mas agora que concluí o livro, achei que foi um investimento que valeu muito a pena, e fiquei com vontade de explorar mais as obras de Victor Hugo!

“Tanto o excesso de sofrimento como o excesso da alegria é uma coisa violenta que dura pouco. O coração do homem não pode manter-se durante muito tempo num dos extremos.”

 


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