sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Gestão por objetivos - A ocasião faz o burlão (Marco Garcia)

 


Prólogo: A ideia deste blog e da abertura que quis promover a novos autores (que espero vir a trazer aqui) foi precisamente criar um espaço na internet onde as pessoas parassem e tirassem um tempo para questionarem as grandes temáticas do nosso tempo. Goste-se ou não, não podemos fugir de estruturas de poder e controlo. É assim nas escolas e universidades, empresas, institutos públicos, ministérios e órgãos de poder executivo, entidades de aplicação da justiça, e até no mundo da cultura e desporto. Tal como Leonardo Padura oportunamente escreveu, pensar que a História nos esqueceu é um erro. Por isso é importante que a saibamos observar e tirar um tempo para pensar. Apesar de eu e o Marco temos bases diferentes e vimos de áreas de estudos diferentes, é interessante ver como desde a História e o Direito até à Economia e Gestão que as grandes questões do nosso tempo se colocam: que tipo de sociedade é que queremos? É nessa linha que, com muito gosto, volto a publicar um artigo do Marco, que acredito que será do agrado do leitor! (Luís Araújo)

 

A gestão por objetivos foi desenvolvida por Peter F. Drucker. Mas no fundo, como é que funciona o modelo de gestão por objetivos? Este tipo de modelo é utilizado por todos os sistemas hierárquicos e autocráticos, invariavelmente formados por pessoas. Temos alguém no topo, normalmente o presidente e o quadro de administradores, e à medida que vais descendo na hierarquia vais encontrando camadas de pessoas que reportam à pessoa acima. As pessoas que estão no topo, estão a uma grande distância das pessoas que se encontram na linha de baixo, e o seu propósito, não é aumentar o lucro, a rentabilidade dos capitais próprios, o volume de negócios, ou até mesmo o valor para o acionista. Isso, aliás, é o preço que elas têm de pagar para atingirem o seu verdadeiro objetivo que é manter ou aumentar a sua posição na hierarquia, aumentando o seu conforto e o seu nível de vida. Na gestão por objetivos a ideia é que as pessoas que se encontram no topo estabeleçam os objetivos para o grupo de pessoas que se encontram na camada abaixo, e assim sucessivamente até chegarem às pessoas da linha da frente. Se olharem para isto, faz algum sentido: tu dás às chefias intermédias metas e objetivos, e dás-lhes a liberdade para elas fazerem isso, e elas vão fazer tudo para defender a sua posição no sistema, porque o importante não é o propósito da instituição como um todo, o importante é a posição que cada um ocupa na hierarquia e cada um tenta defender esta posição ao máximo para ir subindo na cadeia de comando.

Existem algumas vantagens deste modelo: tu podes delegar recursos ao longo de vários caminhos, existe muito tempo livre para reuniões entre os níveis hierárquicos intermédios e superiores, onde podes colocar as pessoas a falar sobre coisas. Isso é positivo e é uma vantagem, mas este modelo também tem desvantagens: uma das coisas que têm de entender é o controlo, é muito importante que tenhas controlo sobre este tipo de modelo, e que adotes uma postura de comando e controlo, a pessoa que se encontra mais acima na hierarquia dita as ordens ou instruções, e os que estão mais abaixo têm de as cumprir, o que significa que as camadas mais baixas não têm liberdade para decidir nada, porque a liberdade vai-se perdendo ao longo da linha de comando, assim como o cumprimento dos prazos que vão diminuído à medida que vais descendo na hierarquia, os níveis mais baixos têm de se conformar, acatar ordens, e trabalhar com prazos completamente esmagados. O que se pede a estas pessoas é conformidade, não é comprometimento e criatividade. O modelo de avaliação de desempenho é um modelo determinista utilizado em sistemas autocráticos, que promove uma competição compulsiva entre as pessoas, em todos os níveis, o objetivo é ser melhor que o outro a qualquer custo, para se destacar e atingir a excelência individual, através de técnicas de manipulação. O que as pessoas não entendem é que isso é anti sistémico, e falar em espírito de equipa neste contexto é puro disparate. Num grupo de 4 remadores em que cada um tem um remo. Se todos os remadores remarem a uma velocidade de 10 %, a embarcação anda devagar, mas a direito. O que acontece se eu tiver um remador a remar a uma velocidade 50% acima dos restantes? A embarcação começa a andar em círculos, perde a direção e não chega ao destino, é o mesmo que ter uma banda filarmónica onde cada músico toca num ritmo diferente, o resultado não é música, é ruído, e é precisamente isso que acontece na maioria das funções e estruturas de uma organização: quando as pessoas têm objetivos individuais, porque tudo está interligado, é o desgoverno total, a maioria dos números não nos dizem rigorosamente nada acerca da direção da organização, principalmente se forem apresentados isoladamente e fora de contexto, é o que acontece na maioria das empresas porque continuarmos a pensar de forma analítica, e as pessoas não se apercebem disso. Agora, isso vai criar outro tipo de problemas graves, porque são as pessoas dos níveis mais baixos, que detêm 100% do conhecimento dos clientes e dos procedimentos, e quanto mais sobes na hierarquia, menos tu falas com os clientes.

Outra das coisas que acontece neste sistema de gestão por objetivos é que a implementação é um sinal de sucesso. Se eu conseguir encontrar um projeto e o conseguir implementar, eu vou agradar às pessoas que estão acima, e dessa forma eu posso mostrar-lhes que eu fui capaz de implementar algo, e posso subir para o nível seguinte. Se tu quiseres estar feliz no sítio onde estás, tens sempre de agradar às pessoas que estão acima de ti, e vais utilizar todo o tipo de truques para o conseguires, tu não vais colaborar com as pessoas que se encontram à tua frente, ao teu lado, ou atrás de ti, isso seria uma perda de tempo em atingires os teus objetivos individuais, tu só vais olhar para eles se os puderes utilizar como trampolim, para conseguires agradar à pessoa que está acima, para que possas subir mais um nível, porque sabes que a tua subida depende disso. Consequentemente tu sobes sempre um nível para pedires permissão para prosseguir, portanto, as pessoas dos níveis mais baixos, têm sempre de pedir permissão ao nível acima. As pessoas nos níveis de baixo não têm liberdade nem autonomia para decidirem nada, têm de se limitar a cumprir ordens e instruções, e dessa forma passam a ser vistas como funções e não como pessoas com propósito próprio: passam a ter apenas uma função que cumpre o propósito da organização. Não é correto tratar as pessoas dessa forma, porque todas as pessoas têm propósitos próprios, mas quando esses propósitos passam a ser, subir na hierarquia a qualquer custo, através da subserviência, do cinismo, da hipocrisia, e da manipulação de resultados, isso vai criar ambientes de trabalho perigosos, completamente disfuncionais e tóxicos. Outro dos problemas é que neste modelo existe muita procura por permissão, e isso abranda o sistema. Conformidade é aquilo que tu obténs das pessoas que estão nos níveis mais baixos, tu não obténs comprometimento, tu obténs conformidade (isto é, nós fazemos o que nos disserem). As pessoas que estão nos níveis mais baixos da hierarquia vêm coisas que se vão repetindo ao longo do tempo, nós tentámos uma coisa durante uns quantos anos, e depois verificámos que não resultou e no entanto eu fiz tudo corretamente, e tentam outra coisa, e voltam a tentar novamente a coisa que já tinham tentado anteriormente, principalmente se existir muita mobilidade na gestão, e andam sempre para a frente e para trás com as mesmas soluções, e muitas das pessoas que estão nos níveis mais baixos, e que se encontram na linha da frente começam a aperceber-se disso: “Bolas, nós fizemos isto há 10 anos atrás e não resultou, porquê que eles o estão a fazer novamente?”, e isso retira  a possibilidade de termos orgulho no trabalho que desempenhamos, tira-nos o sentimento de competência e de contribuir para a melhoria do sistema.

Outra coisa muito comum neste modelo são as reorganizações. O rácio de sucesso para a reorganização é de 1 para 4, estamos a falar de uma taxa de sucesso de apenas 1 em 4.  O que acontece na gestão por objetivos é que tendes a ter uma estrutura de silos na vertical, por vezes são tão espessos que não são chamados de silos, mas sim de chaminés, tu permaneces no teu silo e só tens contacto com as pessoas que estão acima e em baixo no teu silo, isso não acontece de forma transversal até porque cada silo está a competir de forma compulsiva com os demais, o que encontras é rivalidade, não encontras colaboração, mas sim rivalidade, porque a competição é feita de uma forma compulsiva, é isso que encontramos dentro dos silos e fora deles, a questão é que todos desenvolvem os seus próprios silos, e a tendência é para que exista muito pensamento de curto prazo, muita rivalidade interna, muito medo, muito cinismo e muita hipocrisia, e isso é mau para a saúde das pessoas, para o ambiente de trabalho, para o negócio a longo prazo, e para o valor do acionista ou sócio, no longo prazo. “Vamos ver se conseguimos fazer os resultados hoje, ou de preferência ontem”, “nós é que estamos certos”, “não existe trabalho com mais responsabilidade que o nosso”, “nós fartamo-nos de trabalhar, os outros não sabem o que é trabalhar”, “andamos nós a trabalhar que nem uns loucos para os outros terem uma vida descansada, é só boa vida, chegam tarde e saem cedo, eles não querem saber de nada, fazem o que querem, são uns incompetentes, não sabem fazer nada como deve ser”. É este o tipo de discurso que ouvimos em quase todas as funções e em quase todas as estruturas de uma organização, que seguem este sistema, e quanto mais eficiente tu fores a cumprir instruções, mais este ambiente se vai agravando, e mais horas tens de trabalhar para continuares a cumprir as instruções, e isto não é sustentável.

Outra coisa interessante é que todas as pessoas dizem exatamente o mesmo umas das outras, é a cultura da culpabilização, estão sempre a apontar o dedo e a tentar encontrar o culpado, e muitas vezes esse culpado é a pessoa ou pessoas que estão a tentar fazer aquilo que é correto, é por isso que as empresas não conseguem reter talentos. O maior problema da gestão por objetivos é quando tu te encontras num nível intermédio e entregam-te um projeto, e tu sabes que precisas agradar às pessoas que estão acima, e tu não o consegues fazer, o que é que tu fazes? Fazes exatamente o que todos fazem, e que passou a ser considerado normal, tu forjas os números, manipulas resultados para parecer que tiveste sucesso, para que possas subir na hierarquia ou manter a tua posição, o importante é defenderes as tuas regalias ou aumentá-las, e vais fazer tudo para o conseguires a qualquer custo, o importante é agradares às pessoas que estão acima de ti, é claro que este sistema só funciona num circuito fechado e controlado por um grupo restrito de pessoas, mas no dia em que alguma coisa correr mal, vão ter problemas. Forjar os números é muito comum, ou então alteras as coisas de forma a parecerem melhor do que na realidade são. Existe também muito medo nas camadas mais baixas e intermédias, o que acontece se eu não aparecer com aqueles números? Eles movem-me para um nível mais baixo. Se eu sair um pouco fora da caixa as pessoas não vão gostar, eu vou levar uma avaliação baixa, não vou receber prémio de desempenho, despedem-me, ou melhor, fazem com que seja eu a despedir-me. Se olharem para este modelo quem é que sofre mais? Os clientes e os funcionários dos níveis mais baixos. Os clientes ficam de fora, é preferível agradar às pessoas que estão em cima do que aos clientes, ou às pessoas que se encontram nos níveis mais baixos, mas são as pessoas dos níveis mais baixos que têm o conhecimento dos clientes, dos procedimentos e dos processos, e os clientes são a razão de existir, de qualquer organização, sejam eles internos ou externos.

Foram feitos alguns estudos na American Hospital Association e descobriram que o conhecimento das camadas de baixo é de 100%. Os Supervisores só sabem 74% de tudo aquilo que se passa, os gestores intermédios 9% e os gestores de topo 4%. Portanto, existe uma grande desconexão entre os que estão em baixo e os que estão no topo no que respeita ás rotinas diárias, e tem-se tentado resolver este problema com mais controlo por via regulatória e  tecnológica, com mais legislação, novos programas, novas aplicações, mas isso só tem ajudado a agravar ainda mais o problema, porque quanto maior for o controlo, menor é a liberdade das camadas de baixo e intermédias que detém o conhecimento do sistema e dos clientes, maior é o medo e pior é a comunicação. As pessoas quando são chamadas a falar nunca vão dizer a verdade porque têm medo, elas vão continuar a fazer o que sempre fizerem, tentam agradar a quem está acima, e quanto mais chefias intermédias existirem maior será essa desconexão. A pirâmide do conhecimento está invertida! O que acontece muitas vezes é que os gestores de topo têm de descer e falar com as tropas, mas isso não adianta de muito porque o medo não permite que as pessoas das camadas mais baixas falem abertamente, e uma das coisas que se passa entre estes dois, é que esta pessoa apenas tem 4% do conhecimento e está completamente perdida sobre o que realmente se passa, porque as chefias intermédias tentam a todo custo manter as suas posições, manipulando os dados e os factos, porque sabem que aqueles 4% nunca falam com os 100% das camadas de baixo, e quando falam, as pessoas têm medo de dizer a verdade, têm medo de represálias por parte das camadas mais acima que detêm o poder e o controlo. Neste modelo, é muito importante fazer as coisas corretamente, se não fizeres as coisas corretamente tu desces de nível, o importante é a eficiência, não é a eficácia, outra coisa muito importante é que todas as pessoas se mantenham muito ocupadas, queremos que as pessoas estejam sempre a trabalhar, num ritmo muito elevado para mostrar trabalho e números, o objetivo é a excelência individual, não é a excelência coletiva, porque continuam a achar que se todos forem muito bons, o coletivo também será muito bom, e isso não é verdade, tu poder ter os melhores jogadores e não teres a melhor equipa, porque o todo é maior que a soma das partes, tudo está interligado.

No dia em que este sistema se desmoronar, existem duas coisas que eu vos posso garantir. Uma é que vai haver pessoas a dizer, “bolas, fizemos as coisas corretamente e mantivemos as pessoas sempre a trabalhar num ritmo elevado, qual foi o Problema?”.  O problema é meteres as pessoas a fazer aquilo que é correto. É claro que se estiveres no meio, é possível que exista muita política a acontecer, e se existir política a acontecer, ou se existir muita rivalidade e competição a acontecer na gestão intermédia, vais ter cada vez mais dificuldades. Suponhamos que tu eras diretor de um departamento e precisavas de perder dinheiro para que o resto do sistema desse lucro, o que ias dizer era: “eu não quero perder dinheiro, porque se isso acontecer eu posso descer de nível”, e é muito difícil ver o sistema todo quando estás num silo ou numa chaminé.

Curiosamente Peter Drucker no final da sua carreira reconheceu e disse que o seu sistema era bastante decente, à exceção de um problema. Todos os cargos de chefia tinham de saber quais eram os objetivos certos, e 90% do tempo as chefias estavam 100% convencidas que sabiam quais eram esses objetivos, mas na realidade não sabiam, e isso é bem visível quando olhamos para a sociedade como um todo, e não como um conjunto de partes isoladas. Agora, a gestão por objetivos tem vantagens:

- Delegação de recursos;

- Muito tempo para reuniões;

- Existe uma forma de definir objetivos e avaliar o progresso em direção a esses objetivos;

- Apresenta números;

- Apresenta resultados quantitativos e qualitativos;

Mas para que este método funcione as pessoas precisam saber qual o verdadeiro propósito do sistema, precisam saber a direção certa, precisam fazer o que é correto fazer, e infelizmente isto raramente acontece, e o resultado é a quantidade de escândalos financeiros que temos assistido nos últimos anos, grandes empresas como a Enron (2001), worldCom (2002), Tyco (2002), Freddie Mac (2003), AIG (2005), Lehman Brothers (2008), Olympus (2011), Carilion (2018), Wirecard (2020), Kraft Heinz (2001) entre muitas outras, todas elas utilizavam a  gestão por objetivos, todas apresentavam números muito objetivos e claros, de forma quantitativa e qualitativa, todos os números eram auditados e certificados pelas melhores empresas de auditoria do mundo, mas no entanto isso não foi suficiente, porque como sociedade continuamos a insistir em  fazer muito corretamente aquilo que é errado, e isto leva-nos a muitas das desvantagens que são inerentes à gestão por objetivos:

- Implementação é um fator de sucesso, e não os resultados a longo prazo;

- O sentimento que tens para satisfazeres o nível acima do teu;

- O facto de que precisas permissão para tomar decisões;

- A presença de conformidade e não de comprometimento;

- O desenvolvimento de silos;

- O desenvolvimento de pensamento de curto prazo;

- Forjar os números;

- O medo e a distorção dos resultados;

- Os clientes e os funcionários são deixados de fora da equação;

- Desconexão entre os gestores de topo dos que se encontram na linha da frente;

Aqui estão alguns números importantes da gestão por objetivos:

Na melhor das hipóteses apenas 37% têm um perfeito entendimento do que a empresa tenta alcançar e porquê.

Uma em cada cinco pessoas está entusiasmada com os objetivos da organização.

Apenas 20% confia na organização para a qual trabalha.

Uma muito baixa percentagem de transparência, entusiasmo, liderança, liberdade e confiança.

Se uma equipa de futebol representasse a média das organizações que utilizam o sistema de gestão por objetivos, 4 em cada 11 jogadores saberia qual era o seu verdadeiro objetivo, e não aquele que lhe tinha sido imposto pelo nível acima, 2 em 11 preocupavam-se com esse objetivo e saberiam o que era suposto fazer, e qual a posição em que jogavam, e todos os outros (tirando 2 jogadores) iriam estar a competir uns com os outros, em vez de competirem com os seus adversários. (Marco Garcia)

“É claro que todos queremos bons resultados, mas a gestão por objetivos não é certamente o caminho para obtermos bons resultados.” W.Edwards Deming

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Crítica a Notre Dame de Paris (Nossa Senhora de Paris) – Victor Hugo (1831)


 


“A porta continuou cerrada e o tablado vazio. Desde a manhã que a turba esperava por três coisas: o meio-dia, a embaixada da Flandres e o mistério. Só o meio-dia chegara a horas”

 

Nesta minha segunda leitura e crítica do ano, aventuro-me sobre um clássico da literatura mundial do francês Victor Hugo, por recomendação do meu tio.

Mais conhecido como “O Corcunda de Notre Dame” (versão pela qual o livro ficou conhecido no meio literário anglo saxónico), Nossa Senhora de Paris é uma soberba experiência literária, já diversas vezes adaptada ao cinema, sendo a mais conhecida (pelo menos para pessoas da minha geração) a adaptação ao cinema da Disney. O livro, contudo, tem diferenças substanciais.

Como o nome indica, a ação passa na parte final da Idade Média em Paris, em torno da mítica catedral de Notre Dame. Numa altura em que se começava a eclipsar o modelo de sociedade feudal para uma maior tentativa de centralização do poder político, nas ruas de Paris ainda se faziam sentir as diferenças estruturais das várias estruturas de poder regionais medievais (sejam senhores feudais, seja uma comunidade bairrista de ciganos), uma tensão que vai ser fulcral para o desenrolar da história. Ao mesmo tempo, Victor Hugo, claramente apreciador do estilo arquitetónico gótico, toma da majestosa catedral parisiense como um símbolo da história, fazendo uma crítica urbanística para o seu tempo (o século XIX) que ainda hoje é muito atual: em tempos mais antigos da história, onde a impressa e a difusão da informação não estavam em patamares como os conhecemos hoje, a arquitetura das cidades era mais do que um padrão estético, representa um precioso documento histórico de uma determinada era. O estilo gótico representa isso mesmo, uma transição de uma arquitetura românica com os edifícios mais preparados para as guerras que devastaram a Europa por muitos séculos após a queda de Roma, para uma era de rescaldo, maior pacificação e recuperação da sociedade. O estilo gótico representa isso e muito mais: representa também, como toda a arquitetura e precioso património histórico (que nem sempre apreciamos ou tiramos o devido tempo para o observar) de absorver a mensagem que ele quis transmitir para as gerações futuras. A igreja, como marco de uma era onde a Igreja Católica assumia um papel de relevo central na Europa medieval; e uma preocupação daquelas gerações em deixar para as gerações futuras um legado daquilo que foi o seu tempo. Hoje muitas vezes olhamos para as modernas cidades (inclusive as portuguesas) e observamos uma crescente perda de identidade e constante alteração paisagística substancial, por vezes tremendos atentados ao urbanismo e ao belo que facilmente o leitor consegue encontrar casos.

É em torno desta majestosa catedral, que Victor Hugo criou um plano narrativo com alguns dos personagens mais icónicos: a bela Esmeralda, bailarina cigana que encanta o coração de muitos homens; Cláudio Frollo, o austero clérigo que sucumbe aos desejos mais primitivos; Quasímodo, o Corcunda disforme, cego de um olho, de aparência assustador e , a partir de certo momento da sua vida, surdo; Pedro Gringoire, o filósofo envolvido em confusão; e Febo, o capitão envolvido em dilemas e mexericos da alta sociedade.

“Achava o poeta que não havia nada melhor para dissipar a melancolia do que o espetáculo dum processo criminal, a tal ponto o juízes são, em geral, dotados de uma divertida estupidez.”

O livro começa simbolicamente no julgamento de Quasímodo, que é demonstrativo do soberbo (mas sombrio) sentido de humor do autor, com o momento caricato de colocar um auditor surdo a interrogar outro surdo, e sem ouvir e sem um e outro entenderem o que ambos estavam a falar, tomou a decisão judicial e proferiu a sentença, mostrando ao extremo a sátira que por vezes é a aplicação da justiça.

“Ora o auditor era surdo. Leve defeito para um auditor. Nem por isso mestre Florian deixava de julgar inapelavelmente e com muita congruência. É verdade que ao juiz basta dar a impressão de escutar, e o venerável auditor satisfazia tanto melhor essa condição, a única essência de uma justiça equitativa, quanto era certo que nenhum ruído poder distrai-lo.”

“Assim, bem ruminada o processo de Quasímodo, o auditor deitou a cabeça para trás e fechou um pouco os olhos, para se dar ares de maior majestade e imparcialidade; fê-lo tão bem que nessa altura ficou surdo e cego. Dupla condição sem a qual não há um juiz perfeito.”

É nesta sociedade caricata, divertida e surreal, que o final do livro termina tragicamente: com a execução de uma pessoa inocente, uma tremenda falta de comunicação entre a corte da época, o clero e Quasímodo (sendo o final, por isso diferente do filme da Disney que termina com final feliz).

O Victor Hugo na sua narrativa oscila muito em momentos de comédia e tragédia, acontecendo quase de uma linha para a outra, tendo um sentido de humor claramente peculiar. Recordo-me de há uns anos, num contexto de videojogo que um personagem ter dito algo como “Por vezes, o universo tem um estranho sentido de humor”. Acho que essa citação é perfeitamente apurada para a descrição do autor desta obra.

A grande dificuldade de Nossa Senhora de Paris é o chamado “Pacing”. A introdução é um pouco lenta e os personagens são introduzidos muito mais tardiamente que o habitual no plano narrativo, sendo que não é um livro que se consiga ganhar afinidade com os personagens ao fim de 50 páginas. Mas isso não quer dizer que Victor Hugo não tenha logrado nessa tarefa: alias, se não o tivesse conseguido, muito dificilmente a obra teria sido objeto de tantas adaptações ao teatro e cinema que conhecemos!

No entanto, o livro é também extremamente pedagógico, não só pelas questões da preservação do património como falei supra, mas também na caracterização da sociedade. Em jeito de exemplo, aprendi no livro que a palavra “Gypsy” é um diminutivo Inglês de “Egypcy” sendo cigano a tradução do eslavo da palavra egípcio como diminutivo. Por esse motivo na comunidade cigana os líderes da época eram geralmente conhecidos como duques ou príncipes do Egito, sendo que na descrição daquele povo o autor varia entre a palavra cigano e egípcio.

A escrita do livro é acessível, apesar de por vezes ser densa e ser necessário nas primeiras páginas alguma força de vontade do leitor para conhecer esta magnifica história. Mas agora que concluí o livro, achei que foi um investimento que valeu muito a pena, e fiquei com vontade de explorar mais as obras de Victor Hugo!

“Tanto o excesso de sofrimento como o excesso da alegria é uma coisa violenta que dura pouco. O coração do homem não pode manter-se durante muito tempo num dos extremos.”