“A porta continuou cerrada e o tablado vazio. Desde a manhã que a turba esperava por três coisas: o meio-dia, a embaixada da Flandres e o mistério. Só o meio-dia chegara a horas”
Nesta minha segunda leitura e crítica do ano, aventuro-me
sobre um clássico da literatura mundial do francês Victor Hugo, por recomendação
do meu tio.
Mais conhecido como “O Corcunda de Notre Dame” (versão
pela qual o livro ficou conhecido no meio literário anglo saxónico), Nossa
Senhora de Paris é uma soberba experiência literária, já diversas vezes
adaptada ao cinema, sendo a mais conhecida (pelo menos para pessoas da minha
geração) a adaptação ao cinema da Disney. O livro, contudo, tem diferenças substanciais.
Como o nome indica, a ação passa na parte final da Idade
Média em Paris, em torno da mítica catedral de Notre Dame. Numa altura em que
se começava a eclipsar o modelo de sociedade feudal para uma maior tentativa de
centralização do poder político, nas ruas de Paris ainda se faziam sentir as
diferenças estruturais das várias estruturas de poder regionais medievais
(sejam senhores feudais, seja uma comunidade bairrista de ciganos), uma tensão
que vai ser fulcral para o desenrolar da história. Ao mesmo tempo, Victor Hugo,
claramente apreciador do estilo arquitetónico gótico, toma da majestosa
catedral parisiense como um símbolo da história, fazendo uma crítica urbanística
para o seu tempo (o século XIX) que ainda hoje é muito atual: em tempos mais
antigos da história, onde a impressa e a difusão da informação não estavam em
patamares como os conhecemos hoje, a arquitetura das cidades era mais do que um
padrão estético, representa um precioso documento histórico de uma determinada
era. O estilo gótico representa isso mesmo, uma transição de uma arquitetura
românica com os edifícios mais preparados para as guerras que devastaram a
Europa por muitos séculos após a queda de Roma, para uma era de rescaldo, maior
pacificação e recuperação da sociedade. O estilo gótico representa isso e muito
mais: representa também, como toda a arquitetura e precioso património histórico
(que nem sempre apreciamos ou tiramos o devido tempo para o observar) de
absorver a mensagem que ele quis transmitir para as gerações futuras. A igreja,
como marco de uma era onde a Igreja Católica assumia um papel de relevo central
na Europa medieval; e uma preocupação daquelas gerações em deixar para as
gerações futuras um legado daquilo que foi o seu tempo. Hoje muitas vezes olhamos
para as modernas cidades (inclusive as portuguesas) e observamos uma crescente
perda de identidade e constante alteração paisagística substancial, por vezes
tremendos atentados ao urbanismo e ao belo que facilmente o leitor consegue
encontrar casos.
É em torno desta majestosa catedral, que Victor Hugo
criou um plano narrativo com alguns dos personagens mais icónicos: a bela
Esmeralda, bailarina cigana que encanta o coração de muitos homens; Cláudio
Frollo, o austero clérigo que sucumbe aos desejos mais primitivos; Quasímodo, o
Corcunda disforme, cego de um olho, de aparência assustador e , a partir de
certo momento da sua vida, surdo; Pedro Gringoire, o filósofo envolvido em
confusão; e Febo, o capitão envolvido em dilemas e mexericos da alta sociedade.
“Achava o poeta que não havia nada melhor para dissipar a melancolia do que o espetáculo dum processo criminal, a tal ponto o juízes são, em geral, dotados de uma divertida estupidez.”
O livro começa simbolicamente no julgamento de Quasímodo,
que é demonstrativo do soberbo (mas sombrio) sentido de humor do autor, com o
momento caricato de colocar um auditor surdo a interrogar outro surdo, e sem
ouvir e sem um e outro entenderem o que ambos estavam a falar, tomou a decisão
judicial e proferiu a sentença, mostrando ao extremo a sátira que por vezes é a
aplicação da justiça.
“Ora o auditor era surdo. Leve defeito para um auditor. Nem por isso mestre Florian deixava de julgar inapelavelmente e com muita congruência. É verdade que ao juiz basta dar a impressão de escutar, e o venerável auditor satisfazia tanto melhor essa condição, a única essência de uma justiça equitativa, quanto era certo que nenhum ruído poder distrai-lo.”
“Assim, bem ruminada o processo de Quasímodo, o auditor deitou a cabeça para trás e fechou um pouco os olhos, para se dar ares de maior majestade e imparcialidade; fê-lo tão bem que nessa altura ficou surdo e cego. Dupla condição sem a qual não há um juiz perfeito.”
É nesta sociedade caricata, divertida e surreal, que o
final do livro termina tragicamente: com a execução de uma pessoa inocente, uma
tremenda falta de comunicação entre a corte da época, o clero e Quasímodo (sendo
o final, por isso diferente do filme da Disney que termina com final feliz).
O Victor Hugo na sua narrativa oscila muito em momentos
de comédia e tragédia, acontecendo quase de uma linha para a outra, tendo um
sentido de humor claramente peculiar. Recordo-me de há uns anos, num contexto
de videojogo que um personagem ter dito algo como “Por vezes, o universo tem um
estranho sentido de humor”. Acho que essa citação é perfeitamente apurada para
a descrição do autor desta obra.
A grande dificuldade de Nossa Senhora de Paris é o
chamado “Pacing”. A introdução é um pouco lenta e os personagens são
introduzidos muito mais tardiamente que o habitual no plano narrativo, sendo
que não é um livro que se consiga ganhar afinidade com os personagens ao fim de
50 páginas. Mas isso não quer dizer que Victor Hugo não tenha logrado nessa
tarefa: alias, se não o tivesse conseguido, muito dificilmente a obra teria
sido objeto de tantas adaptações ao teatro e cinema que conhecemos!
No entanto, o livro é também extremamente pedagógico, não
só pelas questões da preservação do património como falei supra, mas
também na caracterização da sociedade. Em jeito de exemplo, aprendi no livro que
a palavra “Gypsy” é um diminutivo Inglês de “Egypcy” sendo cigano a tradução do
eslavo da palavra egípcio como diminutivo. Por esse motivo na comunidade cigana
os líderes da época eram geralmente conhecidos como duques ou príncipes do
Egito, sendo que na descrição daquele povo o autor varia entre a palavra cigano
e egípcio.
A escrita do livro é acessível, apesar de por vezes ser
densa e ser necessário nas primeiras páginas alguma força de vontade do leitor
para conhecer esta magnifica história. Mas agora que concluí o livro, achei que
foi um investimento que valeu muito a pena, e fiquei com vontade de explorar
mais as obras de Victor Hugo!
“Tanto o excesso de sofrimento como o excesso da alegria é uma coisa violenta que dura pouco. O coração do homem não pode manter-se durante muito tempo num dos extremos.”
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