domingo, 15 de janeiro de 2023

A Transparência do Tempo (2019) de Leonardo Padura (crítica)



“Acreditar, ou querer viver a vida à margem da História, é um absurdo. Pensar que a História nos esqueceu equivale a ignorar que acima da nossa vontade, fazemos parte de uma realidade ingovernável que nos envolve. E pensar que nos salvaremos dela é impossível: não interessa que estejamos no que parece ser um meandro perdido da corrente, porque na altura de dilúvio tudo se inunda, tudo se agita e os caudais alteram-se”.


Após dois brilhantes artigos do Marco, regresso ao blog com uma crítica ao primeiro livro que li em 2023.

Já tinha, num artigo anterior, elogiado o cubano Leonardo Padura, e depois de em 2022 ter lido dois dos seus livros, resolvi começar o ano com uma fórmula que para mim é vencedora e ler outro dos seus livros, sendo que este (ao contrário dos anteriores que tinha lido) com o personagem principal mais icónico da sua produção literária: o detetive Mário Conde.


“A História demonstrava-lhe, dizia, que nunca nada fora melhor, que os fundamentalismos, a prepotência, a ânsia de poder e as infinitas estratégias utilizadas por alguns para enganar, explorar, governar e, fundamentalmente, foder os outros, eram atitudes omnipresentes desde o tempo das cavernas. Mesmo assim, às vezes sonhava com vagas possibilidades futuras que nunca se concretizavam, embora o fizessem aguentar-se.”


O livro começa com Conde, já na sua reforma e perto de fazer 60 anos, a ser abordado por um antigo colega de escola que pretendia contratar os seus serviços como detetive privado para recuperar uma Virgem negra. Esta estatueta de origem medieval foi palco de intensos planos narrativos em três momentos históricos distintos: no tempo das Cruzadas, na Idade Média; na sangrenta Guerra Civil Espanhola em 1936; e em Cuba em 2014. A Virgem de madeira, no que era suposto ser um policial, acaba por na escrita imaginativa e dinâmica de Padura, por colocar em diversos moldes choques de credos religiosos, a importância da preservação do património histórico, a ganância e corrupção da sociedade contemporânea, os fanatismos ideológicos (ponto esse em que Padura demostra que nas diferentes eras históricas os efeitos catastróficos dos mesmos), e em termos próprios do autor, numa descrição apurada sobre o Estado atual da História, a ressaca do mundo contemporânea e a falta de rumo coletivo da humanidade.


“Mas o que sei é que essa imagem talhada em madeira negra é uma obra humana, e, por isso, um símbolo para uma fé. Essa imagem foi criada por alguém com algum propósito. Um artista devoto esculpiu-a em madeira negra porque queria dizer alguma coisa nessa precisa cor; sentou-a numa cátedra porque queria representar o seu grande poder para os homens; deu-lhe cores e vida para a tornar mais próxima e mais transcendente, também mais bela... Quem a fez ou que a mandou fazer queria representar nela a origem de tudo, a terra onde cai a semente e nasce a vida, a mãe do redentor que pretendia fazer do mundo um lugar melhor. E acredito que alguém a trouxe até aqui por alguma razão ou porque significava alguma coisa, porque estava a salvá-la ou a esconde-la de algo. Não sei de quê, não posso sabê-lo, ou talvez saiba. Ela também o sabe... E talvez sejas tu o encarregado de a salvares novamente dos excessos humanos, que são infinitos e recorrentes. Não pelos seus milagres possíveis, nos quais podemos acreditar ou não, mas pelo milagre de ter existido e acompanhado os homens nos seus desassossegos durante tantos séculos. Uma testemunha do tempo. Esse é um motivo suficiente para cuidarmos dela e a protegermos.”


Não obstante, Padura modera o estado de espírito depressivo com momentos de humor negro deliciosos, pela caracterização de verdadeiros laços de amizade (que muita falta fazem num mundo cada vez mais solitário e isolado) e até na simples procura de elementos da vida reconfortantes


“...quando tantas coisas se desfaziam, ele tinha o privilégio de contar com amigos que o amavam e que ele também amava.”


“... a Internet só funcionava bem nos programas de televisão nacional (que Conde nunca via, porque na sua casa nem sequer havia televisor e ele já se maltratava o suficiente com o álcool para suportar também semelhantes agressões aos seus neurónios);”


Em jeito de crítica mais negativa, o policial de Padura (pelo menos esta obra) não tem o suspense de outros livros do mesmo género. Mas de certa forma, pela profundidade e temas que aborda, não termina como o típico policial em que tudo acaba bem para todos (menos para as vítimas). Isso acaba por ser uma coisa boa e realista na minha opinião: nem sempre o trabalho policial se faz naqueles termos glamorosos e inocentes, e nem sempre (e como bem descreveu o Marco aqui) a verdade é simples e pragmática como um raciocínio puramente matemático

Já incontornável nesta crítica é a relação do leitor com os personagens Padura já utilizou Mário Conde e os seus amigos/colegas em obras anteriores e por isso é difícil para o leitor estabelecer uma relação com muitos personagens sem conhecer previamente livros anteriores, nos quais esse aspeto certamente estará mais bem trabalhado.


Ainda assim, “A Transparência do Tempo” foi uma aposta certeira de leitura de início de ano. Tal com os anteriores livros que já falei de Leonardo Padura, fiquei com mais vontade de conhecer a sua bibliografia.


“Na realidade, as lições e leituras disponibilizadas pelo padre Joan só serviam para tornar mais satisfatórias as tarefas e, em certos casos, para ter a possibilidade de associar os assuntos da sua vida e da sua aldeia aos de outras vidas e sítios diferentes. E, às vezes, para o fazer sonhar.”


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