quarta-feira, 29 de março de 2023

Parte I – Os Miseráveis, Victor Hugo (1862) – Crítica

 


“O homem tem necessidade de luz. Quem se afunda no oposto da luz sente o coração oprimido. Quando os olhos veem negrura, o espírito fica perturbado. No eclipse, na noite, na opacidade fuliginosa, mesmo os mais fortes, sentem ansiedade”.

 

Há momentos da nossa vida em que o determinado livro na determinada hora nos faz mais sentido que nunca. E há ainda poucos momentos da vida em que deparamos com uma obra artística (seja no cinema, literatura, pintura, …) em que dizemos para nós mesmos: estamos perante uma verdadeira obra-prima! Senti isso em 2014 quando li o Guerra e Paz, e voltei a sentir isso agora que estou a ler um dos melhores livros de sempre.

Na verdade, o tempo verbal está correto: ainda estou a ler o livro! Na edição que adquiri, a obra está editada em dois volumes, sendo que ontem conclui o primeiro. No entanto, creio que para lhe fazer justiça e pela profundidade das temáticas já abordadas, esta obra justifica dois artigos, sendo este o primeiro.

 

“As violências do destino têm essa particularidade: por mais perfeitos ou frios que sejamos, arrancam-nos do fundo das entranhas a natureza humana e obrigam-na a mostrar-se à superfície.”

 

Os Miseráveis, como o título indica, trata daquilo que chamamos “a miséria humana”, e foi escrito já numa fase avançada da vida de Victor Hugo (contrariamente a Nossa Senhora de Paris que foi escrito sensivelmente três décadas antes). Mas o que é a miséria humana? Talvez a resposta esteja na caminhada tumultuosa de Jean Valjean, o grande protagonista da obra, que neste primeiro volume divide-se em 3 livros, cada um com o nome de uma personagem diferente: o primeiro, sobre “Fantine”, mãe solteira abusada tanto pela sociedade em que está inserida como pelos cuidadores da filha, sujeita a diversas humilhações e terríveis privações para lhe garantir algum sustento; o segundo, “Cosette”, filha de Fantine que tem um início de vida absolutamente desastroso, sendo explorada cruelmente pela família que a acolhe e só Jean Valjean lhe consegue trazer uma luz de esperança para uma vida até então de sofrimento; e o terceiro “Marius”, o jovem parisiense que como todos os jovens é chamado para os desafios da vida adulta em circunstâncias difíceis, e cujo crescimento e maturação é perturbado não só como vive o passado recente de França como pelo cupido do amor enquanto observa Cosette já crescida.

 

“Por mais que modelemos da melhor maneira esse bloco misterioso de que a nossa vida é feita, o veio negro do destino volta sempre a aparecer.”

 

Acima disse que Jean Valjean é o personagem principal e o fio condutor esta obra: de origens humildes e severamente condenado por um crime menor (furto de um pão) acompanha a tumultuosa história de França desde a revolução de 1789 até (pelo menos parte em que vou na obra) à revolução de 1830, em que o seu percurso acompanha se cruza em momentos diferentes da sua vida com os personagens acima descritos. Como antagonista e um dos agentes responsável pela miséria humana temos o polícia fanático Javert, para quem a lei e a ordem são absolutas e não há espaço para pensamento crítico. Recordo-me que no artigo do Guerra e Paz falei sobre a justiça e a postura que às vezes temos sobre não tomar as decisões cruéis, nem tão pouco as contestar. Javert vai mais longe: toma a decisão e não descansa enquanto o seu fim for alcançado, qualquer que seja o desfecho, sendo por isso descrito pelo narrador como uma pessoa perigosa. E de facto, em vários momentos da nossa vida já nos cruzamos com pessoas assim e talvez, arrisco-me a dizer, já pensamos assim. Javert, independentemente do bem que Jean Valjean possa ter feito na vida das pessoas com que cruza, e independentemente da injustiça e desproporcionalidade das medidas de coação aplicadas sobre quem investiga, não descansa enquanto a lei não for cumprida. E é com este personagem, sádico, cruel, desequilibrado, e quadrado que Victor Hugo nos alerta para os perigos que este tipo de postura pode ter em sociedade.

“A probidade, a sinceridade, a candura, a convicção, e a ideia do dever são coisas que, quando vão no caminho errado, se podem tornar odiosas, mas que mesmo odiosas continuam a ser grandes; a sua majestade, própria da consciência humana, persiste no horror. São virtudes que padecem de um vício: o erro. A implacável alegria honrada de um fanático em plena atrocidade conserva como que um brilho lugubremente venerável. Sem o suspeitar, Javert, imerso naquela imensa felicidade, era digno de pena, como todo o ignorante que triunfa. Não havia nada tão pungente e tão terrível como aquele homem em que se revelavam traços a que poderíamos chamar a maldade do bem.”

 

Assumindo a postura de jurista, que nunca a escondi, recordo-me nas aulas de Direito Penal começarmos a disciplina sobre os fins das penas, e rapidamente essa matéria é deixada de parte, até pela escassa aplicação prática. Os Miseráveis é também uma obra que nos leva a refletir sobre as questões clássicas de criminologia e papel do Direito Criminal na sociedade, sendo que levo daqui uma importante reflexão sobre a mesma e sobre o papel da justiça mais uma vez, cuja aplicação pode muitas vezes ser um catalisador da miséria humana, criando uma sociedade (ainda) mais injusta.

 

“Conforme a filosofia que temos, assim é a cama onde nos deitamos.”

 

A obra é também uma verdadeira enciclopédia da história contemporânea, a qual começou segundo a maioria dos historiadores em 1789 com a Revolução Francesa, acontecimento que desencadeou muito do que foi e é a História da nossa era. Sobretudo com Marius, o jovem advogado e tradutor parisiense, acompanha as rápidas mudanças de estados de espirito e transição de pensamentos geracionais daquela época, desde anos pós tomada da Bastilha, o império de Napoleão e a sua derrota em Waterloo, o retorno dos Bourbons, e à instauração de uma nova monarquia constitucional: mostra-nos uma sociedade francesa dividida, intransigente, a acusar a velocidade alucinante que os acontecimentos passaram a tomar e o impacto que isso teve naquela geração. Essa tendência, como é do conhecimento geral, só tem vindo a agravar-se à medida que nos aproximamos do presente dado o alucinante aumento da velocidade da História.

 

“Não há nada como o sonho para engendrar o futuro. Utopia hoje; carne e osso amanhã.”

 

Qual será o destino de Jean Valjean, Cosette, Marius e Javert? Mal posso esperar para ler o segundo volume, o qual farei o artigo a seu tempo no blog.

 

“Do egoísmo do homem que sofre, passa à compaixão do homem que reflete.”

 

Não queria terminar este artigo sem fazer uma pequena partilha pessoal: acima disse que há momentos da vida em que parece que lemos o livro certo na altura certa. E foi verdade: numa semana que foi (e está a ser) incrivelmente dolorosa, marcada pelo falecimento do meu avô, a história de Marius, por estranho que pareça e dado o teor do que escrevi acima, deu-me conforto e força para enfrentar estes tempos. Victor Hugo nesta obra oportunamente escreveu que “não existe avô que não adore o neto.” É para mim difícil de deixar por palavras todo o carinho e apoio que o meu avô me deu, sobretudo num momento muito difícil da minha vida, e por esse motivo quero dedicar-lhe este artigo. Em One Piece, no arco de Wano, após a queda do regime de Orochi, inicialmente a filha de um opositor cruelmente executado lançou um balão com uma mensagem “Quero-te ver pai”. Mas depois, quando soube que o tirânico regime caiu e que a morte do pai não foi em vão, alterou a mensagem escrevendo “Obrigado pai”. É desta forma que quero terminar o artigo dizendo de coração: obrigado avô.

 


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