quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A crise eleitoral e análise ao presidente Joseph Kabila – República Democrática do Congo

Dentro de 1 mês, a 23 de dezembro de 2018, haverão eleições presidênciais na República Democrática do Congo. Estas eleições, ao que tudo indica, vão determinar quem será o próximo chefe de estado, sucedendo a Joseph Kabila. O mandato do atual presidente terminou oficialmente em dezembro de 2016, daí que já se pode imaginar que estes dois anos não foram nada pacíficos para o Congo. De novo, uma série de maus acontecimentos vêm criar ainda mais instabilidade no país, de que a sua história já é demasiado marcada por terríveis acontecimentos...

O problema começou em 2016, nos trâmites constitucionais: segundo a Constituição do país, o presidente da República só pode ocupar o cargo num período máximo de dois mandatos, e essa regra por si impedia o atual presidente de se candidatar a um terceiro mandato. Joseph Kabila é o presidente desde janeiro de 2001, sucedeu ao seu pai (que foi assassinado), e venceu as eleições presidenciais em 2006 e 2011. Entre 2001 e 2006 a atual constituição não estava em vigor no país, pelo que esse período de tempo não se contabiliza como mandato presidêncial, ainda que Kabila tivesse exercido os poderes como tal. Portanto, contabilizados dois mandatos, (o primeiro entre 2006-2011, e o segundo 2011-2016), e cumprindo o preceito constitucional, Joseph Kabila estava obrigado a abandonar a presidência do país e impedido de concorrer às eleições presidências, que teriam de ser marcadas. Ora o seu mandato terminou oficialmente a 20 de dezembro de 2016, mas as eleições foram adiadas para data a definir, com a justificação de que não existia nem infraestrutura nem cadernos eleitorais fidedignos para estas se realizarem. De imediato, gerou-se uma grande onda de protestos nas principais cidades do país, exigindo a saída de Joseph Kabila e o cumprimento da constituição. Os confrontos e mortes entre as forças de segurança e oposição foram uma constante nas principais cidades do país.
 
A imagem de marca do país desde 2016, protestos e confrontos entre manifestantes, que exigem a saída de Joseph Kabila, e as forças de segurança. Esta foto foi tirada em Kinshasa em dezembro de 2017 pelo fotógrafo da Agência Reuters, Thomas Mukoya.

A situação agravou-se de tal modo que, por mediação da Igreja católica, e tentando criar um clima de maior estabilidade no país, foi assinado a 30 de dezembro de 2016 um acordo entre Joseph Kabila e a oposição, em que este se comprometia a abandonar o poder até ao final de 2017, podendo continuar a exercer as funções presidenciais até lá. Apesar da desconfiança que o presidente tentasse alterar a constituição para poder concorrer de novo, a oposição aceitou.


Joseph Kabila na Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque, 2017.


Para compreender melhor a situação, importa entender o quadro social em torno de Joseph Kabila – apesar de legitimado institucionalmente, o presidente não tem, de todo, boa imagem no país. Em praticamente tudo a seu redor paira uma nuvem de incerteza e desconfiança: oficialmente, é filho de Laurent Kabila (o antigo presidente, assassinado por um dos seus guarda costas em 2001) e nasceu na aldeia de Hewa Bora, perto da cidade de Fizi, junto ao lago Tanganica (na fronteira com a Tanzânia) em 1971. Mas milhões de pessoas acreditam que na realidade Joseph Kabila não é o filho biológico de Laurent Kabila, que Joseph na verdade nasceu no Ruanda, filho de pais ruandeses, em 1971, e o seu nome real é Hippolyte Kanambe, sendo o pai biológico, um rebelde opositor do na altura presidente do Ruanda, Juvénal Habyarimana, de nome Adrian Kanambe. Seguindo essa teoria, quando o seu pai biológico morreu, Laurent Kabila casou com a sua mãe segundo costumes tradicionais, e adoptou os seus dois filhos (Joseph Kabila tem uma irmã gémea, Jaynet Kabila, que é a mulher mais rica da República Democrática do Congo, recentemente viu o seu nome referido no escândalo do “Panamá Papers”). Não tomando posição, vou assumir que o nome real do presidente é Joseph Kabila, também para facilitar ao leitor, mas deixo a minha visão pessoal sobre esta tese, que faz algum sentido, até porque ao contrário do pai, Joseph Kabila sempre teve uma política de enorme abertura ao Ruanda, é fluente na sua língua local e pode ajudar a explicar o que realmente aconteceu no assassinato de Laurent Kabila, que vou já falar no parágrafo seguinte, e onde vou lançar a minha maior dúvida sobre esta tese.
Esta foto foi tirada algures entre o leste do Zaire e a Tanzânia, nos anos 70 em que Kabila, opositor de Mobutu, se dedicava ao contrabando de diamantes. Estão aqui identificados Laurent Kabila à esquerda, e à direita o guerrilheiro ruandês Adrian Kanambe, o alegado pai biológico de Joseph Kabila.

Indo agora ao assassinato de Laurent Kabila, ainda hoje é um mistério, mas sabe-se que foram acusadas e presas mais de 50 pessoas (e houve mais de 20 condenações à morte). De entre os acusados, estão vários soldados a que lhes foi imputado o assassinato de importantes e potências testemunhas, horas depois do assassinato de Laurent Kabila. A sua justificação no julgamento foi a do cumprimento de ordens, mas essas ordens só poderiam ter sido dadas legitimamente pelo atual presidente do país, que na hierarquia militar era á época o único superior hierárquico desses soldados (além do presidente que foi assassinado)... Claro que a justiça congolesa não investiu nesse tópico, mas se se fica com a impressão de que Joseph Kabila esteve envolvido no assassinato do pai, deixa outra dúvida: Laurent Kabila tinha mais de 20 filhos, se estava em guerra com o Ruanda e tinha mudado radicalmente a postura em relação ao país vizinho, porque iria promover alguém que não era o seu filho biológico e que era ruandês? Seja como for, esta hipótese que atual presidente é na verdade ruandês, ajuda a criar a plausível teoria de que o Ruanda, à época em guerra com o Congo, pode também ter instrumentalizado o assassinato (com auxílio de terceiros), e definir a nova ordem no país. Mas tudo isto não passa de um mistério - O Congo ainda tem muitos acontecimentos históricos que não são transparentes e são muito mal fundamentados, e fica muito difícil para um país criar uma ordem eficiente e progressista quando assim o é...
 
O presidente Laurent Kabila cumprimenta o filho, o general Joseph Kabila. Esta foto foi tirada na segunda guerra do Congo, algures entre 1998 e 2000. Efetivamente existem mais parecenças físicas entre Joseph Kabila e Adrian Kanambe, mas só isso não chega para se ter certezas. 
Dito isto a imagem do presidente atual nunca poderia gerar grande afetividade pela população, dada a desconfiança que gera. A tudo isto, se acrescenta o cenário mais prático do governo de Joseph Kabila ou, por outras palavras, a natureza do regime: não há liberdade de impressa; ainda que o país tenha assinado uma moratória internacional que suspende a pena de morte, as execuções sumárias pelas forças de segurança ainda são muito comuns; e o exército nacional em termos práticos é uma milícia institucionalmente legitimada. 
Por outro lado, a maior parte do país (sobretudo as zonas mais ricas em recursos naturais), são um verdadeiro palco de guerra, que não sentiram diferença quase nenhuma com a assinatura dos acordos de Sun City e o fim da Segunda Guerra do Congo em 2003. As regiões do país mais afetadas por este cenário, são as do Ituri e do Kivu, que entre os piores pontos desde 2003, se devem destacar a ocupação das cidades de Goma (que serve como "quartel geral" das tropas da ONU na região), e de Bukavo em 2012 pelos rebeldes do M23 (um grupo armado pró Ruanda), que as saquearam; e o caso dos massacres de Beni, que foram denunciados pela Amnistia Internacional em 2016, em que foram assassinadas mais de 600 pessoas pelo exército congolês. 
Por outros pontos do país, os problemas de segurança continuam muito grave, como por exemplo o caso mais recente do Kasai. 
As melhorias no país durante os 17 anos de governo de Joseph Kabila foram irrisórias, a esmagadora maioria da população continua a viver na miséria e pobreza extrema, a falta de condições mínimas de vida e a extrema insegurança por todo o país, torna a República Democrática do Congo hoje uma "tragédia colossal", como descreve o historiador Simon Montefiore.


Deixando esta panorâmica geral, o ano de 2017 não foi um ano fácil para o Congo, nem para Joseph Kabila. Os protestos de vários setores da oposição continuaram, pois o acordo assinado (doravante, os acordos de ano novo), não positivavam o cenário de uma hipotética alteração constitucional, que permitisse a Kabila concorrer às eleições. Ao mesmo tempo, a democracia congolêsa mostrou as suas fragilidades a figuras da oposição importantes, a referir dois casos: o de Jean Pierre Bemba, que foi o primeiro primeiro ministro de Kabila depois de em 2006 ter vencido as eleições, mas entrou em desgraça com o presidente, fugiu para o exílio em Portugal e foi condenado em Haia por crimes contra a humanidade, cumpriu a pena, voltou ao país para se candidatar, mas a sua candidatura foi recusada pelo CENI (a comissão organizadora das eleições); e o de Moisés Katumbi, antigo governador do Katanga e figura muito popular no país, teve um mandato de captura emitido pela República Democrática do Congo após ter declarado a oposição a Kabila, fugiu para o exílio na Europa e foi recentemente impedido de entrar no país. 
Simultaneamente, a situação de segurança no Kasai foi-se agravando em vários níveis, nomeadamente com as decapitações dos funcionários da ONU, as valas comuns e o polémico vídeo de Mwanza Lomba, como escrevi aqui.

O mês de maio foi particularmente agressivo. Pela primeira vez em muitos anos, Kabila deu uma entrevista a um jornal internacional, o alemão Der Speigel, onde entre vários assuntos, falou dos acordos de ano novo, negando a promessa de realização de eleições até ao fim de 2017, cenário que foi confirmado no verão pelo CENI (a comissão encarregue de organizar as eleições presidenciais, criada no inicio de 2017). O presidente deixou a palavra vaga que as eleições se vão realizar "o mais breve possível", mas que apesar de não o ter dito expressamente, deixou em aberto a ideia de que, ainda que não se possa falar de um terceiro mandato, é possível alterar uma constituição, diversos países por todo o mundo já o fizeram. Claro que os resultados desta entrevista desencadearam uma onda de protestos ainda maior. Mas poucos dias depois, a 17 de maio, a poucos km's do palácio presidencial, a prisão de segurança máxima em Kinshasa (a tristemente conhecida prisão de Makala) foi atacada pelo grudo rebelde Bundu Dia Congo, um ataque que esvaziou o pavilhão feminino da prisão e uma percentagem muito significativa do pavilhão masculino, que de entre outros prisioneiros, constavam o líder do movimento. Este grupo armado, de maioria kikonga, tem como objetivo a restauração do reino do Congo existente antes da chegada dos europeus, que correspondia no essencial ao litoral do Congo Brazzaville (República do Congo), o ocidente da República Democrática do Congo e o norte de Angola. Portanto, tal como no Kasai, podemos ver neste acontecimento que também na região próxima da capital Kinshasa, a mais desenvolvida do país, as instituições político sociais são muito precárias, sendo que muitas das estruturas ditas tradicionais e já existentes antes dos europeus, continuam a ter um papel muito importante. Nos dias seguintes, as condições de segurança apertaram imenso na capital, que já este acontecimento apanhou todos de surpresa.

Efeitos dos bombardeamentos no entrada principal da prisão de Makala (Kinshasa). Os rebeldes do Bundu Dia Congo foram os responsáveis pelo ataque.

Um dos muros rebentados na prisão de Makala (Kinshasa). Cerca de 3.000 prisioneiros fugiram.

Ao mesmo tempo, situação de guerra no centro e leste do país, teve um efeito humano devastador. O número de refugiados chegado a níveis alarmantes, surgiram mais relatos de terríveis atrocidades, cometidas no Kasai, e, com todo este cenário, ocorreu uma passagem ativa para a oposição da Igreja Católica, sobretudo por não ter visto ser respeitado o acordo que mediou entre o presidente e oposição, o que provocou uma maior mobilização dos seus crentes (e tornou-se em algumas vezes o "alvo" das forças de segurança, que atingiu o seu ponto mais crítico na passagem de ano). Mais ainda, a morte dos 14 capacetes azuis na região do Kivu, de novo serve como indicio da completa degradação das condições de segurança no país. 
Foto tirada em agosto de 2017 pela fotógrafa alemã Lena Mucha, ao campo de refugiados em Kalemie (junto à fronteira com a Tanzânia).


O final do ano de 2017 e o início de 2018, provocou de novo a fúria na oposição, pois o calendário eleitoral apresentado em novembro de 2017 consagrava ainda um prazo de 13 meses (marcando as eleições para 23 de dezembro de 2018) para a realização de eleições, o que veio dizer por outras palavras que Kabila iria (e vai) continuar no poder por mais um ano, e como se pode ver aqui nesta reportagem da Al Jazeera, os confrontos entre a oposição e as forças de segurança voltaram a agravar-se, e chegou mesmo a ser decretado pelo governo um corte à Internet. Desta vez houve mesmo com participação ativa da Igreja Católica, que organizou em Kinshasa nos dias 30 e 31 de dezembro, uma grande manifestação, que começou na Catedral de Notre-Dame do Congo, e que se dirigiu às ruas da capital, terminado com os tristemente comuns confrontos, como podem ver na reportagem da Al Jazeera. Portanto, foi a passagem de ano de 2017 para 2018 foi bastante violenta, chegando ao ponto que se temesse que o país caísse numa nova guerra civil.
Entre linhas, o papel da Igreja no Congo é muito variável, tal como a sua proximidade do poder: o papa João Paulo II visitou o Zaire duas vezes, o papa Francisco I já reuniu pessoalmente com Joseph Kabila (que é cristão anglicano oficialmente, mas a primeira-dama é católica, tal como a maioria dos congoleses), mas no terreno a situação é: por um lado, a Igreja tem um papel bastante importante, tem uma significativa capacidade de mobilização dos cidadãos, dado que, (mesmo que de modo manifestamente curto para as necessidades do país), acaba por ser uma das poucas prestadoras de serviços, nomeadamente saúde e ensino, fora de Kinshasa. Mas por outro lado, a relação com o poder é muito variável e de certa forma instável ou bipolar se se preferir, tanto oscila entre uma grande proximidade, para a ruptura quase total, pelo que é difícil de se definir ao certo, talvez fale disso noutro artigo adiante. 
Joseph Kabila e João Lourenço reunidos em Luanda, em agosto de 2018.


Finalmente, agosto deste ano, após uma visita oficial a Angola, Joseph Kabila anuncia que não se vai candidatar às eleições, nomeando o seu ministro do interior, Emmanuel Ramazani Shadary, como seu sucessor e representante do seu novo partido, o FCC ("Front commun pour le Congo") às eleições. Shadary vai, ao que tudo indica vencer as eleições e ser o próximo presidente, restando ainda saber o que vai ser o futuro de Joseph Kabila, se vai tentar instituir uma prática "tipo Russia", fazendo uma alternância de poder  paralela à de Putin e Medvedev, ou se vai afastar-se do poder político, um pouco como aconteceu como a família dos Santos em Angola. Pessoalmente, penso que Angola e o Ruanda foram os influênciadores desta decisão: o mesmo problema institucional surgiu no Ruanda com o presidente Paul Kagame, e por ventura acredito que Kabila também tenha considerado uma opção similar de alterar a constituição, mas a realidade do Ruanda é completamente diferente, ainda que ditatorial, a imagem interna do presidente Kagame é muito melhor do que a de Kabila no Congo. Por outro lado, Angola, com a recente transição de poder de José Eduardo dos Santos para o General João Lourenço, a postura do novo presidente, tem sido a de substituir os titulares dos orgãos do centro do poder, como se viu no caso de Isabel dos Santos, pelo que verá com melhores olhos a substituição do presidente da República Democrática do Congo para uma figura mais "neutra" dentro do "jogo regional africano" no país. 
Aqui vou dar a minha opinião sobre o papel do Ruanda e Angola, tendo como ponto de partida tudo o que disse sobre os dois países no parágrafo anterior: 
- o Ruanda, que colocou o pai de Kabila no poder em 1997, e que hoje tem uma grande participação militar no leste do país, porventura poderia estar interessado em manter Kabila, mas teve uma postura prudente ao ver que a continuação do presidente poderia gerar ainda mais instabilidade no país o que se poderia virar contra si.
- na óptica de Angola, cuja intervenção foi decisiva em 1998 na Segunda Guerra do Congo para salvar Laurent Kabila, esta tem imensa importância e interesse no Congo, não só por causa da questão de Cabinda, como também pela fronteira na zona do Kasai (recorde-se, é para Angola que se dirige o maior afluxo de refugiados de guerra do Congo), tendo também uma muito significativa presença militar nas regiões fronteiriças e na parte ocidental do país, sobretudo na província do Bas Congo, onde também tem interesses geoestratégicos de grande importância (o que alias criou algum clima de tensão diplomática entre os dois países recentemente), sobretudo pela exploração de petróleo off-shore na zona de Cabinda. E esse também pode ser um fator importante que faz preferir ao governo de Luanda uma transição de poder em Kinshasa.
Emmanuel Ramazani Shadary (aqui fotografado num comício de apoio a Joseph Kabila nas eleições presidências de 2011), é agora o candidato principal e favorito a vencer. Ramazani Shadary está neste momento com os bens congelados na UE e proibido de entrar nos seus estados-membros por causa da situação no Kasai. Recorde-se que neste momento ainda é o ministro do interior, e portanto responsável pelas forças de segurança.
Este artigo já está a ficar muito longo, portanto vou ficar por aqui, mas termino só com esta ideia: ao ocorrido nestes dois anos, não se pode chamar uma transição pacífica de poder com sucesso. No Congo nunca houve uma transição pacífica desde a saída dos belgas em 1960: Kasa-Vubu foi derrubado e fugiu para o exílio, Mobutu idém, Laurent Kabila foi assassinado, tal como o primeiro ministro eleito em 1960, Patrice Lumumba, e Moises Tshombé (que foi um separatista do Katanga e mais tarde primeiro ministro). Ainda que Joseph Kabila saia num cenário diferente, parece-me difícil chamar a isto uma transição pacífica. Mas na República Democrática do Congo a realidade pode alterar-se muito depressa e sem aviso prévio, portanto até ao final de este ano haverão novas novidades, esperemos que boas para variar...

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