sábado, 17 de novembro de 2018

Conflito regional no Kasai (República Democrática do Congo: 2016 – em andamento)


Um dos principais focos de atividade militar do país concentra-se na região do Kasai, no centro-sul do Congo (que corresponde no essencial a 3 províncias, Kasai Central, Kasai Oriental e Kasai Ocidental). Neste momento, e não descurando a já muito afectada “grande zona de guerra” do Kivu, Ituri e a região junto ao lago Tanganica, o Kasai é atualmente o maior “exportador” de refugiados de guerra em África e um dos maiores do mundo.
 
O rio Lulua, um dos afluentes do rio Kasai que, por sua vez, é um afluente do rio Congo.
De novo, os problemas do país não são simples (como expliquei aqui), mas vou tentar clarificar o que está em causa nesta região: o Kasai corresponde no essencial à zona no leito do rio (e seus afluentes) que dá o nome à região: o rio Kasai, que nasce em Angola, e é um dos principais afluentes do rio Congo. As suas maiores cidades são Kananga e Mbuji-Mayi.


Mapa da zona de conflito.

O rio Kasai e suas margens têm uma das maiores concentrações de diamantes do mundo, em níveis absolutamente faraónicos! A abundância é tanta que diversas vezes áreas urbanas das principais cidades, como Mbuji-Mayi (“a capital dos diamantes do Congo”) foram demolidas para se explorarem os diamantes no seu subsolo (estas demolições já ocorreram tanto em zonas mais desfavorecidas como em bairros de luxo!). Ainda hoje, em locais urbanos tão triviais como os esgotos ou nos passeios das cidades de Kananga e Mbuji-Mayi, é comum encontrar-se diamantes. A ilusão é de um “El Dorado”, mas esta realidade permite-nos colocar perante uma realidade desconfortável: os diamantes não são, de todo, minérios raros, aquela ideia de que são muito difíceis de encontrar e já praticamente não existem, é mentira, existem em enorme abundância, sobretudo em África e países como a África do Sul, Angola, Congo, República Centro Africana, Serra Leoa... Mas existe um monopólio global que não permite que este elemento mineral nos chegue a preços acessíveis, tornando-o tão dispendioso para o agente económico comum. Infelizmente os diamantes já assumem uma importância económica cultural tão grande (quem se esquece dos simbólicos “anéis de noivado”?) que fica difícil de explicar e por em prática a ideia de que talvez fosse positivo organizar um boicote à sua comercialização... Para quem queira saber mais, deixo um vídeo mais descontraído e informativo sobre a situação.

Os diamantes chegam ao mercado por um valor extremamente inflacionado, o que constitui uma discrepância monumental em relação à sua enorme abundância na Natureza...


Pois bem, voltando ao Kasai, esta região nunca “morreu de amores” por pertencer à República Democrática do Congo. Em 1960 proclamou mesmo a sua independência do Congo, tendo a sua resistência sido “esmagada” pela intervenção da URSS. O separatismo do Kasai foi mesmo um dos motivos da queda de Patrice Lumumba, pois quase em simultâneo a província do Katanga também proclamou a independência, numa revolta que só foi contida graças à intervenção da ONU e obrigou Patrice Lumumba a recorrer à ajuda dos “dois blocos da guerra fria” ao mesmo tempo. Claramente os EUA e a URSS não viram isto com bons olhos, e o na altura primeiro ministro caiu numa posição desconfortável e perigosa, que lhe acabou por ser fatal.
O Kasai é conhecido como "a província dos diamantes do Congo". Mas mais uma vez, os seus recursos minerais acabam por ser uma "maldição" em vez de uma "benção".
Nos anos de Mobutu, o investimento na região do Kasai por parte do governo central foi praticamente inexistente. Inserido na ideia de economia de mercado de Mobutu, a MIBA (entidade exploradora de diamantes da região) assumiu o papel que deveria ter sido do governo: por intermédio da empresa, foram construídas as escassas infra-estruturas na região, viradas mais para a exploração mineral, pelo o que a região acabou por não beneficiar, praticamente nada, pertencer ao Congo (à época Zaire). Ainda que Jonas Nzemba, o diretor da MIBA nos anos de Mobutu, seja bem visto pela população local (pois pela mão dele surgiram as poucas infra-estruturas e alguns projetos sociais), o Kasai na prática teve uma segunda vaga de colonização, a pouco desenvolvimento que teve foi somente virado para a exploração de recursos naturais e exportação. Mobutu claramente beneficiou dessa situação, pois Nzemba todos os anos tinha que depositar parte dos lucros da empresa na conta pessoal do presidente. Com a guerra civil em 1997, a MIBA apoiou Kabila, tal como praticamente todo o resto do país, consciente do Estado a que o país caiu, mas sendo uma zona tão rica em diamantes, o Kasai passou por um grande foco de instabilidade, e foi diversas vezes palco de batalhas e saqueada pelos rebeldes da área. Mas pouco antes de Laurent Kabila morrer, para financiar o esforço de guerra, tomou a decisão de nacionalizar toda a industria diamantifera do país. Esse cenário acabou por não se estabelecer, sendo que ainda hoje a MIBA é a principal exportadora de diamantes do país, e opera em moldes parecidos dos do tempo do Zaire.
A circulação no Kasai é muito difícil. A região pouco ou nada beneficiou dos diamantes no seu subsolo.

Mas falta ainda adicionar uma peça importante ao contexto da região: o Kasai continua sem uma identidade nacional comum com a restante República Democrática do Congo, e ainda mantêm uma estrutura societária herdada dos antigos reinos africanos que ai existiam antes da Conferencia de Berlim de 1884-85. E aqui surge a figura de Kamuina Nsapo, um poderoso líder regional que, em 2016 entra em confronto com o presidente Joseph Kabila, por não o ter nomeado para nenhum cargo executivo provincial. Esta situação pode ser surpreendente mas não é de estranhar: na região, antes da chegada dos Belgas já existiam reinos e estruturas sociais, e como se pode ver deste contexto histórico, com a criação da colónia/país Congo, nunca foi constituída na região uma base institucional social e política funcional, sendo a única base criada a de exportadora de diamantes. Além do papel social da MIBA, nunca foi apresentada, na região, instituições alternativas e funcionais às já enraizadas, pelo o que (e isto é comum ao resto de África), fenómenos que se pensava afastados como o retorno dos "tribalismos" não devem ser surpresa, até porque a nova "unidade" nacional e cultural não foi proveitosa aos habitantes locais.

O "Kamuina Nsapo"Jean-Pierre Mpandi. 
O ainda presidente Joseph Kabila. Estas são as duas "figuras públicas" do conflito no Kasai


Sendo este um importante “nobre” da região, claramente que a situação não foi aceite de bom grado, já que Kamuina Nsapo dispunha de um enorme poder local que queria ver reconhecido, tendo essa situação piorado ainda mais quando este foi assassinado. A partir deste momento, deu-se inicio a uma rebelião da região entre tropas do governo e várias milícias locais, que mantêm em comum a denominação de Kamuina Nsapo (em homenagem ao seu líder, entretanto assassinado) que, aproveitando também a crise política no país (haverá um artigo mais adiante sobre isso) viu uma hipótese para tomar uma "fatia" dos lucros na região.
O conflito regional no Kasai rapidamente escalou num nível brutal de atrocidades e chegou a números assustadores: mais de 2 milhões de refugiados deslocados maioritariamente para Angola, 1 milhão de pessoas em risco de fome, milhares de pessoas assassinadas, valas comuns e execuções horrendas: pelos dois lados em conflitos, há indícios de tortura, canibalismo, decapitações e mutilação genital feminina. Apesar da intervenção da força da ONU, o MONUSCO, não é de esperar que haja grandes melhorias nos próximos tempos...

Por toda a região, as mortes, deslocados, valas comuns, violência armada e doença têm sido uma constante.


De destacar ainda dois momentos deram um pouco de mediatismo ao conflito: em fevereiro de 2017, surgiu um vídeo do exército congolês (que refuta as acusações) que mostra uma divisão armada a executar civis perto da aldeia de Mwanza Lomba (deixo aqui o link com uma ressalva: tenham em consideração, antes de verem as filmagens, que estas são particularmente violentas, por isso peço a melhor ponderação pessoal do leitor se pensar em ver). O segundo momento foi, nesse mesmo ano, a decapitação de dois funcionários da ONU,o americano Michael Sharp e a sueca Zaida Catalán, cujos restos mortais foram encontrados numa vala comum junto a uma estrada.
 
A vala comum onde Michael Sharp e Zaida Catalán foram encontrados. Muito próxima havia uma outra vala com 40 polícias, também decapitados.
De novo, estamos perante um conflito violento, complexo, mortífero e difícil de explicar. Mas em jeito de síntese, por um lado temos um conjunto de milícias locais que têm, entre outros objetivos (para além dos económicos), de tomar o controlo da região e fazer uma limpeza étnica na região, pretendendo criar um Kasai de identidade homogénea à etnia Bantu (recorde-se, em todo o país existem mais de 70 grupos étnicos diferentes); por outro, temos o regime central negligente e ditatorial, e o seu exército, que não se coíbe de usar a força e qualquer meio violento para atingir o resultado, não operando de maneira diferente dos demais grupos rebeldes. Qual o pior?

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