terça-feira, 16 de maio de 2023

«E se amanhã, tu, não estiveres?» (2014) de Vítor Alves Morais – Crítica


 


“Engraçado, passamos toda a nossa vida a pensar única e exclusivamente no futuro, acabamos por não viver o presente porque estamos a pensar no futuro, e quando ele chega, tudo aquilo que nós planeamos não serve de nada, porque a realidade é sempre outra.”

 

Este blog tem cumprido o seu propósito: explorar coisas novas e experimentar conteúdo novo. Este artigo é mais um nesse sentido. Uma vez que vou experimentar algo novo, vou trazer um livro diferente dos que tenho trazido até agora – diferente no sentido de que pela primeira vez vou analisar um livro de um autor que conheço pessoalmente e tenho em boa consideração.

Mas antes de irmos para a crítica em si, quero partilhar duas coisas pessoais: a primeira, que contrariamente ao que tenho feito este ano, não critiquei todos os livros que li. Antes de ler o livro do Vítor, li o primeiro escrito publicado de Dostoievski “Gente Pobre”, publicado aos 25 anos do autor. É um livro simples e de leitura rápida, mas foi motivador e inspirador para mim, uma pessoa que é grande apreciadora da literatura de Dostoievski, por ter ganho a noção da sua estrondosa evolução, iniciada com o “Gente Pobre” e terminada numa verdadeira obra prima, “Os Irmãos Karamazov”, um dos melhores livros de sempre; a segunda coisa que queria partilhar é a que raramente leio o mesmo livro duas vezes, e só abri essa exceção para três livros: o primeiro, “O Crime do Padre Amaro” de Eça de Queiroz, que acho que para iniciação a Eça é mais acessível que “Os Maias”; o segundo, “Demónios” de Dostoievski, um verdadeiro caldo de filosofia e política, um livro avançado para época, quase como que em jeito de profecia sobre o que viria a acontecer à Rússia no século XX; e o terceiro, este livro que vou crítica agora: já o tinha lido há uns anos, mas senti que nesta fase da minha vida e dados recentes acontecimentos, consigo entender melhor a mensagem que o autor quis transmitir.

 

“A vida é irónica… É irónica, mas não madrasta, como alguns dizem… A vida é boa mãe… educa-nos…”

 

As temáticas do livro podem sumariamente reconduzir-se a quatro núcleos: o primeiro relacionado com o Alzheimer, a velhice e o sofrimento que isso implica não só ao doente como às pessoas que lhe são queridas; o segundo, relacionado com a morte (que infelizmente senti muito recentemente) e a efemeridade da vida que, apesar de ser um tema desconfortável de falar, cedo ou tarde todos somos chamados a enfrentar; e o terceiro, o amor sobre as suas mais diversas manifestações, o modo como nos aquece a alma em moldes equiparáveis aos que nos leva ao desespero e (quem nunca?) ao arrependimento, pelo o que se fez e pior ainda, pelo o que não se fez; e finalmente, a escrita, esta maravilhosa e libertadora atividade que é uma manifestação de conforto e liberdade que devemos preservar e incentivar!

 

“… nesta vida há muita coisa que fica por dizer, há muita discussão que fica por resolver, muito amor por demonstrar, muita amizade que termina sem qualquer motivo que realmente valha a pena, por isso, faz sempre a pergunta “E se amanhã, tu, não estiveres? Quando estiveres à frente de alguém que ames. Vais ver que será tudo muito mais fácil…”

 

É com todas estas temáticas que o Vítor nos constrói uma belíssima história, uma história iniciada nos anos 30 do século XX numa pequena aldeia raiana transmontana onde o narrador começa por descrever sinteticamente as terríveis condições de vida e enormes desigualdades sociais que não há muitas gerações era o presente de milhões de portugueses; a obra mostra também a efemeridade da riqueza e do património, não esquecendo os tremendos choques que a vida nos coloca que afetam indiscriminadamente todas as pessoas, independentemente da base patrimonial. No centro desta enorme ginástica literária, temos Marília, transmontana, adotada pela fidalga benfeitora Pilar Moreira de Albuquerque, amiga de Afonso (o seu médico e fiel vassalo, digamos assim), bem como a filha de Marília, Pilar Veiga.

É surpreendente as temáticas que o livro aborda: paralelamente ao já referido, os personagens da história progridem na história em tempos diferentes e lugar diferentes: de Trás-os-Montes, a Coimbra, de Sintra a Lisboa, dos anos 30 a 2014, ano que termina a história.

Analisando agora os aspetos formais, o narrador oscilar harmoniosamente entre vários personagens e vários momentos históricos, algo que para quem escreve não é de todo fácil, mas que o Vítor consegue fazer com qualidade. Ao longo do livro vemos também o uso típico de expressões correntes de determinados contextos e determinado “status” social, desde as típicas expressões transmontanas, até ao corrente uso de impropérios que todos nós usamos em determinados contextos e determinados momentos. Este livro, em função da sua natureza, dimensão e multiplicidade de temáticas que aborda, naturalmente que não consegue densificar todas elas com o nível que mereciam, mas na minha opinião isso acaba por abonar a seu favor por dois motivos: o primeiro, torna o livro num livro de leitura fácil e rápida; e o segundo, motivo pelo qual comecei este artigo a falar do primeiro livro de Dostoievski, mostra o tremendo potencial que o Vítor tem e pode ainda vir a alcançar no meio literário, o que me deixa muito curioso sobre futuros livros que ele venha a publicar e de ver a minha geração conseguir alcançar o seu espaço neste mundo das letras.´

Por todos estes motivos, recomendo vivamente a leitura do livro, sendo que vou ficar atento à carreira do Vítor, desejando que ele não abdique do talento que tem.

“O que há de bom no futuro é o mistério. É a incerteza. O passado já nós o sabemos, já nós o vivemos, por isso, pouco tem de interessante.”

Sem comentários:

Enviar um comentário