domingo, 30 de outubro de 2022

A Cartuxa de Parma (1839) Stendhal – Crítica

Quando iniciei este blog, algures em 2018, a escolha do título não foi inocente. Tenciona usar esta página como um meio de treinar a minha escrita e de aproveitar os finais de dia, onde normalmente gosto de tirar umas horas só para mim, para refletir, meditar sobre acontecimentos do dia a dia, memórias que não tenho sempre presentes e eventuais desabafos ou críticas sobre eventos da história atual.

Com o tempo, o blog ficou mais vocacionado para política internacional africana, sobretudo do Congo, um dos temas que me faz muito refletir sobre o estado da sociedade.

Mas hoje, voltando ao espírito original do blog, vou fazer algo diferente e aproveitar esta página para sair da minha zona de conforto e arriscar falar sobre um livro que me foi recomendado em 2014 (era eu um jovem aluno na licenciatura em Direito) por um estimado amigo, que infelizmente faleceu em 2017.

Este ano, tal como milhões de pessoas por todo o mundo, estive infetado com Covid-19 no passado mês de fevereiro, tendo por isso passado 5 dias em isolamento no meu quarto. Felizmente não tive grandes sintomas, e por isso quis aproveitar o meu tempo, não só em séries e redes sociais, mas também, finalmente, depois de tantos anos, ler o livro que o meu estimado amigo me recomendou e partilhar convosco as minhas conclusões.

A Cartuxa de Parma é um reflexo da personalidade do autor e um marco histórico na transição de estilos literários de um romantismo para o realismo do século XIX. Podemos dividir o livro em duas metades, sempre acompanhado o protagonista, Fabrizio. Idealista, romântico, ingénuo, sente uma forte e irresistível admiração por Napoleão, tendo partido para a batalha de Waterloo como voluntário, cujo desfecho é por nós conhecido.

“A guerra não era então aquele nobre e comum arrebatamento de almas sedentas de glória que ele tinha imaginado pelas proclamações de Napoleão”

O ponto que para mim foi mais interessante, e creio ser esse o motivo pelo qual o meu estimado amigo me ter recomendado o livro, foi a perspetiva jurídica que o livro me abriu e, apesar de com pena minha não ter lido o livro mais cedo, acredito que por outro lado, naquelas idades não teria a mentalidade certa para absolver o conteúdo. Fabrizio, de ricas famílias italianas, após a desastrosa experiência militar envolve-se num homicídio e na segunda parte do livro é precisamente focada no “modos operandi” do processo criminal. Neste ponto, faço uma ressalva para juristas: frequentemente existe uma presunção nossa de que a realidade se reconduz ao que está na lei, e que o mundo seria o absoluto caos sem os juristas e a realidade (ou devo dizer, a ilusão de realidade) que nós salvaguardamos. Por isso é muito fácil na nossa classe e posição ter uma posição de altivez perante outros, o que na verdade é uma ilusão. Stendhal , em termos intemporais, demonstra-nos que a aplicação do direito nem sempre funciona no rígido e presunçoso raciocino silogístico ou matemático que julgamos, sendo que tanto naquela altura como hoje, muita (ou diria a totalidade) da aplicação do direito é feita de moldes puramente subjetivos e contextualizados: porque a letra da lei é dúbia; por detrás do aplicador do direito existem condicionantes pessoais e políticas que se traduzem em ambições ou ajustes de contas; e porque os meios de se fazer política e de aplicação da justiça muitas vezes se confundem uma com a outra, levando a importantes e intemporais questões sobre o que é verdadeiramente a justiça, o que é verdadeiramente o direito e o que é verdadeiramente a política.
Na sociedade atual, em comparação com as cidades estado italianas novecentistas, a análise feita por Stendhal não só é atual como o estado da realidade que ele descreveu, aprofundou-se. Pessoalmente, isso não era algo que aos 19 anos conseguia concluir, e apesar de sentir a falta do meu amigo e não ter discutido isso com ele, dou graças por ter tido aqueles 5 dias confinado em fevereiro e ter lido o livro.

“O fiscal-geral era alto, tinha belos olhos muito inteligentes, mas a cara picada de bexigas. Quanto ao espírito, tinha-o, e muito, e do mais fino. Passava por dominar perfeitamente a ciência do Direito, mas era sobretudo pela rabulice que ele brilhava. Fosse por que aspeto fosse que um caso se apresentasse, encontra facilmente, e em poucos instantes, meios muito bem escorados no Direito para chegar a uma condenação ou a uma absolvição. Era sobretudo rei nas subtilezas de procurador.”

Como crítico, puxando para uma vertente mais negativa, o livro é por vezes denso nas intrigas da corte, e o final é eventualmente demasiado apressado e abrupto. Pode-se dizer, talvez porque o autor se cansou da história. Ou então, se quisermos ser mais ousados, podemos dizer que talvez toda aquela intriga da justiça, demora da aplicação e demora das decisões, no fim se reduza a nada, o que é algo que a nós (sobretudo aos juristas, onde me incluo), deve conduzir-nos um pouco à realidade.

Por todos estes motivos, recomendo a leitura do livro, querendo terminar o texto com uma homenagem ao meu amigo António, agradecendo o seu precioso contributo na minha vida, e com uma mensagem de saudade. 

2 comentários: