sábado, 31 de dezembro de 2022

A Matemática como forma de exercer poder e controlo sobre as massas. Determinismo vs Relativismo – Marco Garcia

 

Prólogo: Não queria deixar de terminar este ano de 2022, que foi o ano que mais publiquei nesta página, com algo que queria fazer há muito. Desde 2018 que queria trazer um convidado para publicar neste blog. Nos últimos dias, na sequência de uma troca de mensagens com o meu estimado colega e amigo Marco, (a quem lhe chamo “a fénix”), ele partilhou comigo este texto da sua autoria, o qual acho que é bom demais para ficar só entre nós, e que deve ser partilhado com o mundo.
Quem me conhece, sabe que gosto e incentivo este prazer que tenho com a escrita, e fico muito feliz com o texto do Marco. Sinto-me realizado por ele ter aceite este meu desafio, desafio este que quero estender a todos vós que acompanham esta página: cultivem o lado criativo e intelectual que têm em vocês! Sem mais demoras, fica aqui o texto do Marco. Feliz 2023 para todos (Luís Araújo).


Podemos entender completamente a realidade? Se acreditarmos que no Universo não existem duas coisas iguais, então a equação 1+1=2 está errada, 1+1 teria de ser diferente de 2, ou maior, ou menor que dois, tudo depende da visão que o observador tem do mundo. Isto é matemática, são números, que existem para justificar aquilo, em que nós, sujeitos observadores, acreditamos ser a realidade. Mas tudo depende daquilo que o observador acredita. Existe quem acredite que esta equação é absoluta, ou seja, que 1+1=2, e que só pode existir esta verdade, que a equação apenas pode ter um resultado: foi isso que nos ensinaram na escola, ou seja, uma visão completamente determinista e absolutista do mundo.

Contudo, há quem acredite que a equação seja relativa, ou seja, que pode ter vários resultados. Porquê? Porque depende daquilo que estamos a falar, tudo depende do contexto, e este pequeno pormenor, faz toda a diferença em saber se esta equação está certa ou se está errada. A matemática explica isso? Não, não explica. A matemática foi criada para simplificar a nossa realidade, mas não é a própria realidade, é apenas uma simplificação imperfeita da mesma, que foi levada longe demais, por todos aqueles que acreditam no determinismo como forma absoluta de explicar a realidade e não tiveram a humildade de reconhecer que o determinismo é apenas uma parte dessa realidade. Dito de outro modo, a matemática é necessária para explicar a realidade mas não é suficiente. Richard Feynman, que recebeu o prémio Nobel da Física em 1965 foi um dos pioneiros da eletrodinâmica quântica, e afirma que os matemáticos estão a lidar somente com a estrutura do raciocínio, não se preocupando com o que estão a falar, nem sequer precisam de saber sobre o que estão a falar ou como eles dizem, se aquilo que eles dizem é verdade.

Passo a explicar: a matemática gera conhecimento, mas não gera entendimento, (muito menos gera sabedoria), ou seja, a matemática, os números, são necessários para explicar qualquer coisa, mas não são suficientes. Segundo Feynman, se se afirmar que os axiomas tal, tal, e tal, que consequências práticas podemos retirar? Então a lógica pode ser realizada sem se saber o que são essas palavras tal, tal, e tal, o que significam? Dito de outro modo os matemáticos preparam o raciocínio abstrato que está pronto a ser usado, se tivemos apenas um conjunto de axiomas acerca do mundo real. Não obstante, existem disciplinas que, para além da matemática, atribuem significado a todas as frases, e esse significado gera entendimento, ou seja, a matemática é uma linguagem universal, mas não é absoluta, ela precisa de outras disciplinas como por exemplo a física, para gerar entendimento. Temos de ter um entendimento das ligações das palavras com o mundo real, e isto é um problema que, de todo, não é resolvido pela matemática. A matemática diz-te como é que as coisas são feitas, mas não te explica porque é que são feitas da maneira que são feitas e porque é que não podem ser feitas de outra maneira. 

Existem várias formas de olhar para um problema, e existem várias soluções para um mesmo problema, todas elas válidas e certas, que a matemática não reconhece, a matemática apenas reconhece uma forma, que é a forma geral e abstrata. Os matemáticos também gostam de fazer o seu raciocínio tão geral quanto possível. Se disseres que tens um espaço com 3 dimensões, altura, largura e comprimento, e se lhes começarem a perguntar sobre teoremas, eles começam por dizer, reparem, “vocês tem um espaço de n dimensões e aqui estão os teoremas”. Sim, mas eu quero apenas para o caso de 3. E eles dizem, nesse caso é só substituir o n por 3, e isso resulta em que muitos daqueles teoremas complicados tornam-se muito mais simples, porque acontece que existem casos especiais, e a realidade do mundo é feita de casos especiais, e não de casos gerais, porque os problemas que tentamos entender no dia a dia são especiais, não são gerais, porque todos nós temos uma visão diferente, da natureza da realidade. Nós não somos todos iguais, nós somos todos diferentes e únicos, e todos entendemos os problemas e sentimos de diferentes formas. Nós estamos sempre a falar de alguma coisa específica e quando nós soubermos o que é que estamos a falar, o pobre matemático traduz isso para uma equação em que os símbolos não significam nada para ele, em que ele não tem nenhum guia a não ser, rigor matemático, e cuidado no argumento: o rigor matemático de grande precisão não é muito útil no mundo real, nem o é a moderna atitude dos matemáticos quando olham para os axiomas. 

Agora, os matemáticos podem fazer o que eles quiserem, não os devemos criticar, porque eles não são escravos do mundo real, o mundo real precisa deles, eles são necessários, mas não são suficientes. Para que se entenda o mundo através da matemática são necessárias outras disciplinas, e é a forma como todas as disciplinas se relacionam que produz esse entendimento, e não a forma como essas disciplinas se comportam isoladamente. 

Voltando à nossa equação, 1+1=2, se eu vos perguntar se esta equação está correta, o que é que vocês devem responder? Depende, se estivermos a falar de átomos, por hipótese, um átomo de hidrogénio tem menos massa do que a massa combinada do protão e do eletrão que o compõe. Como é que algo pode ter menos massa do que a soma das suas partes? Por causa disto E=mc2,ou m=E/c2. Isto acontece porque a energia potencial pode ser negativa. Então a energia potencial de um protão e eletrão dentro de um átomo de hidrogénio é negativa, mas a energia cinética do eletrão que gira em volta do átomo é positiva, mas acontece que a energia potencial é negativa o suficiente, que o resultado da soma da energia potencial com a energia cinética é negativo, e portanto, m=E/c2 é negativo, e um átomo de hidrogénio pesa menos do que as massas combinadas das suas partes. Aliás, todos os átomos da tabela periódica pesam menos do que os protões eletrões e neutrões que os compõem, o mesmo se passa com as moléculas, uma molécula de oxigénio pesa menos do que dois átomos de oxigénio, porque a energia potencial e cinética desses átomos, assim que eles formam uma ligação química fica negativa. Neste caso, uma parte mais uma parte, não é igual a duas partes, é menor do que duas partes consideradas isoladamente, logo, 1+1 não é igual a 2,  1+1<2, isto porque um sistema não é a soma das suas partes mas sim o produto das suas interações. Tal significa que as partes são interdependentes e não podem ser explicadas pelo método analítico. 

A teoria da relatividade postula que tudo no universo é relativo.  Niels Bohr um dos físicos mais importantes no desenvolvimento da mecânica quântica, responsável pela teoria da complementaridade, afirma que “não é a realidade que é subjetiva, nós, sujeitos observadores é que fazemos parte da realidade – que observamos”. Tudo depende do ponto de vista do observador, o tempo é relativo, depende da forma como cada um de nós o gasta. Esta teoria é o oposto da teoria absolutista do universo que diz que 1+1=2 e não pode ser de outra maneira. 

Durante mais de 400 anos, em que estivemos expostos a uma visão determinista da realidade, nós absorvemo-la por osmose no processo de aculturação e esta forma dominante de pensar está assente no método analítico, e essa é a base da nossa cultura. O problema é que esta forma de pensar não explica nada, apenas diz como se faz algo com base em regras rígidas que nada tem que ver com a realidade: dá conhecimento, mas não dá entendimento. Sempre que tentamos explicar a realidade através desta forma de pensar, deparamos com uma série de dilemas para os quais não encontramos explicação e foi por isso que, em 1954, Bertalanfy, encontrou uma outra forma de pensar, compatível com a realidade experienciada por nós, onde o livre arbítrio e o propósito fazem sentido, e acabou com a maioria desses dilemas. Essa nova forma de pensar é sintética, em oposição à forma analítica, e foi isto que Einstein quis dizer com a célebre frase: 

“Sem mudarmos os nossos padrões de pensamento, nós não vamos ser capazes de resolver os problemas que criámos com os nossos atuais padrões de pensamento”.

É preciso uma nova forma de pensar, e a essa nova forma de pensamento deu-se o nome de Systems Thinking. O pensamento sistémico coloca o foco no desempenho do todo, e não no desempenho das suas partes. O importante não é saber o quão bom é o desempenho das partes, mas sim o quão bem elas se relacionam para o desempenho do todo. Isto tem a ver com a forma como as partes se relacionam entre si, e isto requer um outro tipo de organização, completamente diferente daquela que estamos habituados, com diferentes métricas de desempenho. Precisamos de uma outra forma de pensar sobre os sistemas sem ser através da análise. 

O desempenho de um sistema não é a soma das suas partes, mas sim o produto das suas interações. Mas porque é que ainda continuamos a pensar de forma determinista? Porque é mais fácil controlarmos e exercermos poder sobre as massas, se todos acreditarem no determinismo como forma absoluta de ver a realidade, isso ajuda a criar uma sociedade com grande poder de argumentação e muito rigor matemático, mas com muito pouco entendimento sobre a realidade. Isso tem ajudado à globalização, através da produção em massa, do ensino em massa, do consumo em massa, de comunicação em massa, de entretenimento em massa e até das armas de destruição em massa, e isso tem provocado um aumento das desigualdades sociais e todo o tipo de dilemas que a nossa sociedade enfrenta, criadas pelo determinismo, porque o determinismo continua a acreditar que é possível o total entendimento da realidade, e que só existe uma realidade, por outro lado, o relativismo acredita que o total entendimento da realidade é um objetivo do qual nós nos vamos aproximando, mas que  é impossível de alcançar. (Marco Garcia)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Guerra e Paz (1869), Lev Tolstói – A história como equilíbrio entre liberdade e necessidade


 

O homem, em ligação com a vida comum da humanidade, surge como sujeito às leis que determinam essa vida. Mas esse mesmo homem, independentemente dessa ligação, surge como livre. Como deve ser encarada a vida passada dos povos e da humanidade – como produto da atividade livre ou não livre dos homens? Esta é a questão que a história coloca.”

 

Recordo que em 2014, aquando de uma optativa do curso de Direito chamada História das Relações Internacionais, incontornavelmente foi tema de grande atenção e interesse a figura de Napoleão Bonaparte e o Congresso de Viena. Meses antes, nas férias de verão, tinha dado as minhas primeiras chances aos clássicos russos, começando pelo “o Jogador” e o “Demónios” de Dostoievski, mas sabendo da temática e por o Guerra e Paz ser incontestavelmente uma das grandes obras jamais produzidas pela literatura mundial, resolvi aventurar-me neste longo livro.

Guerra e Paz destaca-se pela sua singularidade: rapidamente alterna entre vários planos narrativos diferentes, em datas diferentes. A história começa em 1805, tem o seu ponto alto em 1812 aquando da desastrosa campanha francesa na Rússia, e termina o plano narrativo em 1820. Entre os planos narrativos destacam-se os personagens Piotr “Pierre” Bezukov, o príncipe Andrei Bolkonski e a sua família, tal como a família Rostov, destacando os irmãos Nikolai e Natacha. É também complexo porque entre os planos narrativos alterna com um plano de profundas reflexões do autor, que analisa a história como disciplina, os acontecimentos passados e o seu impacto sobre o seu presente. Por esse motivo o Guerra e Paz, arrisco-me a dizer, é uma obra que porventura terá servido de advento ao que viria ser o modernismo literário de século XX pois não se enquadra numa só categoria típica literária, sendo que pode ser visto como um romance de amor, romance histórico, livro de filosofia, livro de estratégia militar e guerra, ou até mesmo ensaio de ciência política ou história.

Há imensos aspetos que poderia destacar do romance. A sua narrativa interessante já foi objeto de várias adaptações ao cinema, sendo que a que mais gostei foi a mini série da BBC de 2016 com Paul Dano e Lily Jane, sendo que cada plano narrativo tem a capacidade de viciar o autor em saber o que vai acontecer a seguir àquela personagem, algo difícil de fazer numa só obra com tantos planos de ação.

O que quero retirar deste artigo e o que fez deste livro um dos meus preferidos durante muito tempo e o motivo pelo qual 7 anos depois de o ter lido continuar a ter as suas conclusões muito presentes na minha memória é exatamente o que levo do livro para o meu dia-a-dia. Nunca escondi o meu gosto pela História, e acho que o interesse e entusiasmo da disciplina deve ser difundido, até porque, como Tolstói bem escreve, somos nós, agentes comuns que a fazemos. A segunda parte do epílogo do Guerra e Paz são precisamente as reflexões finais de Tolstói sobre o objeto da história: serão aqueles grandes decisores? Napoleão que ordenou a invasão à Rússia? Hitler e as campanhas sangrentas pela Europa nos anos 30 e 40? Johnson e a intervenção americana no Vietname? Ou talvez Vladimir Putin e a atual intervenção na Ucrânia?

Frequentemente existe uma tendência social de canalização de responsabilidades para os órgãos decisores, sendo que muitas vezes tais ordens são executadas em grande medida pelos inferiores hierárquicos. Afinal, foi Putin diretamente que lançou um míssil a Kiev?

A nossa noção de liberdade e necessidade diminui e aumenta gradualmente, conforme a maior ou menor ligação com o mundo exterior, o maior ou menos afastamento no tempo e a maior ou menos dependências das causas, em que observamos o fenómeno da vida humana.”

 

Tolstói demonstra-nos que a liberdade conjugada com a razão e a necessidade são o objeto da história dos povos e, em termos avançados para a época, desconstrói a razão e os elementos das ciências naturais como única e derradeira fonte da história, algo altamente minoritário entre os pensadores da época. Tal pensamento dá muito que refletir no ano de 2022, na sociedade atual.

“Só nesta nossa presunçosa época de popularização do conhecimento, graças ao mais forte instrumento da ignorância (a difusão da imprensa), a questão do livre-arbítrio foi levada a um terreno em que não se pode já colocar a própria questão. No nosso tempo, a maioria das chamadas pessoas avançadas, ou seja, uma multidão de ignorantes, aceitou as obras dos naturalistas, que tratam apenas um dos aspetos da questão, como a solução de todo o problema.”. 

Não resisto em fazer um paralelismo com um personagens de One Piece, uma série que sigo, destacando o almirante Kizaru (Borsalino): ele é um personagem que muito representa a nossa sociedade – está inserido numa sociedade complexa e pouco linear, em que muitas vezes surgem por fontes superiores ordens completamente injustas e cruéis, sendo que ele não as toma, mas tão pouco as questiona, mantendo uma postura sarcástica e descontraída dizendo que estava só a fazer o seu trabalho e “ordens são ordens”. Quando Tolstói nos leva a concluir que o exercício da nossa liberdade dentro do contexto em que vivemos é o verdadeiro objeto da História, transmite em termos ainda hoje atuais uma responsabilidade que temos como cidadãos e como agentes da História, uma responsabilidade que muitas vezes, tal como o almirante Kizaru, preferimos ignorar porque é só o nosso trabalho. Num mundo como o nosso de 2022, com níveis de literacia diferentes, acesso diferente a informação e com recursos que a sociedade novecentista seria incapaz de conceber, este desafio que Tolstói nos fez e nos responsabiliza mais do que nunca, faz com que cada um de nós coloque a mão na consciência e se pergunte: que tipo de sociedade queremos? Que tipo de justiça queremos para o nosso mundo?






A liberdade é aquilo que é examinado. A necessidade é aquilo que examina. A liberdade é o conteúdo. A necessidade é a forma. (…) E só com a sua união se obtém uma clara representação da vida do homem.”

Tal como os protagonistas do Guerra e Paz, destacando Pierre Bezukov, que no seu contexto foi várias vezes desafiado com estas questões, também nós temos essa responsabilidade. E este é um dos motivos pelos quais o Guerra e Paz permanece na minha memória como uma das melhores experiências literárias que já tive.

 

domingo, 27 de novembro de 2022

One Piece Filme Red (2022) - Crítica

 


Em 2019 durante o curso de francês, um amigo insistiu muito comigo para ler/ver One Piece. Na altura não senti grande incentivo, até porque era (e é) uma história muito longa e iria consumir bastante tempo. Ele continuou sempre a insistir que era um investimento que valia a pena, até que em 2020, com o primeiro confinamento e dado que dispunha de imenso tempo livre, resolvi entrar neste mundo e aceitar este desafio. Desde então, nunca me arrependi, e sigo agora a série semanalmente.

Eichiro Oda, o criador da série, é uma das pessoas mais criativas do mundo da cultura e da arte, conseguindo criar um mundo próprio, mas com imensas parecenças à realidade, misturando uns toques de magia ou, se se preferir, de características próprias daquele universo.

A série segue as aventuras de Monkey D. Luffy e a sua tripulação, os piratas do Chapéu de Palha, que têm o sonho em descobrir o misterioso tesouro (o One Piece) deixado pelo “rei dos piradas” Gol D Roger.

A série existe desde 1997, e por isso foi muito interessante ver na sala de cinema pessoas entre os 8 e os 40 anos, mostrando que One Piece é uma série que tem a virtude (que muito poucas séries têm) de transmitir uma mensagem para todas as idades, e que aqueles que começaram a seguir os capítulos de manga semanalmente em 1997, ainda hoje seguem a história com o mesmo entusiasmo.

Existem vários filmes de One Piece que, não sendo parte da história principal, são uma ótima oportunidade de rever muitos das centenas de personagens que já passaram num momento ou outro pela história, e de dar mais uns toques de desenvolvimento a este fantástico universo. O filme Red, foi o mais recente nesse sentido.

No mundo de One Piece, tal como no mundo real, existem várias fações, cada qual com as suas características. O Governo Mundial, que à partida tenciona manter a ordem e a lei no mundo, sendo que muitas vezes funciona de forma absolutamente totalitária, permitindo imensas injustiças da classe dominante (os nobres mundiais/dragões celestiais, que têm imunidade total à lei) e cometendo atos e crimes absolutamente macabros como genocídios e escravatura; já os piratas, uns procuram seguir os seus sonhos e descobrir o One Piece, um tesouro que o Governo Mundial tenta a todo o custo que continue escondido, mas que em larga medida outros atuam como verdadeiros piratas, saqueando, matando, queimando imensos dos territórios por onde pausam, deixando por detrás um rasto de morte e destruição.



Nesta realidade, surge Uta, a personagem principal do filme. Filha de Shanks, o mentor e ídolo de Luffy, o personagem principal, é uma cantora brilhante e popular, que tem o poder de com a sua música levar quem a ouve para um universo paralelo onde ela dispõe de poder absoluto e quer criar uma realidade em que este mundo de conflitos e sofrimento não existem, sendo a sua música um fator de união. Afinal, quem não procura na música um refúgio para a vida real ou um incentivo/ companhia para o dia a dia? Durante o trabalho, a estudar, nas viagens de carro, a fazer as tarefas domésticas, ou simplesmente ao fim do dia a relaxar, a música é uma companhia maravilhosa e que nos preenche. Na aparência a ideia e o plano de Uta seria maravilhoso, mas aqui surge o verdadeiro revés da moeda: Uta quer manter para sempre reféns no mundo dela todos aqueles que ouvem a sua música, não permitindo que regressem ao mundo real. Perante esta ameaça, e sendo que o concerto está a ser transmitido pelo mundo real para milhões de pessoas, o Governo Mundial envia para o local do concerto um enorme armada da Marinha, com ordens de eliminar Uta e todas as pessoas que adormeceram presas ao seu mundo, mesmo que para tal se tenha de exterminar civis inocentes.

One Piece, tem muito a questão do que é a justiça, e eu, como jurista penso muito nas conclusões de Oda: será a justiça somente o cumprimento da lei e ordem, por mais injusta que ela seja? Será a justiça verdadeira não o que está escrito na lei mais aquilo que nos dita a consciência, seja ela o que for? O que é verdadeiramente aquela soma de virtudes para as quais chamamos justiça? Não há uma resposta una e inequívoca a estas questões.

Como tudo na vida, o sonho deve comandar. Apesar da música existir para nos acompanhar e ajudar no dia a dia, não podemos viver só dela. Devemos enfrentar o mundo tal como ele é, nas suas virtudes e defeitos e procurar com o nosso caminho pensar e refletir nestas importantes questões que o mundo de One Piece bem nos coloca e são transponíveis para a nossa realidade.

Em jeito de crítica mais negativa, o One Piece Filme Red talvez não seja o melhor filme para introdução à série dado que aparecem imensas personagens que só com a história principal temos oportunidade de construir empatia com eles, nomeadamente a tripulação de Luffy. Mas assisti ao filme com um sorriso na cara e gostei não só das músicas maravilhosas (deixo uma dela aqui), como me deu uma nova oportunidade de regressar a este mundo e levar conclusões que me tem impacto como sou, uma pessoa deste mundo real com preocupações, mas cheia de sonhos.

 

domingo, 13 de novembro de 2022

O artigo que nunca pensei escrever – 50 sombras (2011)

 


Desde muito novo sou um enorme adepto de futebol. Umas vezes mais atento aos jogos, outras fases só a acompanhar os resultados (#carrega Benfica, desculpem-me os leitores de outras preferências), e como qualquer jovem que cresceu e viu os momentos épicos da sua geração, há um futebolista italiano que cresci a admirar como jogador e como pessoa. O guarda-redes, tido por muito como um dos melhores de sempre e um caso excecional de uma longa carreira (atualmente a jogar no Parma), o italiano Gianluigi Buffon. Numa entrevista dada há uns anos, ainda como jogador da Juventus, mostrando o seu lado mais pessoal e íntimo da carreira, disse algo que me deixou deveras surpreendido tendo em conta que falamos de um jogador de futebol; “Todas as pessoas têm nelas um lado criativo que muitas vezes ignoram”.






“Interviews seem such artificial situations, everyone on their best behavior trying so desperately to hide behind a professional façade. Did my face fit? I shall have to wait and see.”


Assim mesmo se passa no mundo da arte: um dos meus chefes do atual emprego, complementado esta ideia de Buffon, comentou que falar que “não se gosta de ler” ou que “não se gosta de músicas, séries, filmes, pintura, escultura ou qualquer tipo de manifestação de cultura artística”, tem na génese duas razões: ou porque não foi incutido o hábito (e quem me conhece pessoalmente e vai conhecendo aqui no blog sabe que desafio as pessoas que me conhecem a arriscar neste mundo fascinante dos livros); ou então porque a pessoa não arriscou a explorar todo este mundo de possibilidades e por vezes a reação hostil a estes hábitos deriva de um certo medo de arriscar e descobrir qual o género e estilo que nos faz sentido e nos complementa. O mundo muitas vezes é complexo, e como em todos os aspetos da vida, tudo está em arriscar na descoberta daquilo que nos faz sentido.

Recentemente desafiaram-me a ler um livro que nunca esperei que o fosse fazer. Agora que o terminei (o primeiro volume), achei que seria interessante e desafiante partilhar algumas ideias sobre este livro, que é um género literário que não leio com regularidade, mas que em todo o caso e como qualquer livro, podemos retirar algumas ideias.


“the man is a walking mass of contradictions.”


As 50 sombras de Grey fez um enorme sucesso: é um livro de escrita acessível, muito fácil de se ler, com momentos pontuais de humor (sobretudo na linguagem e nas trocas de emails entre os dois personagens), e representa (mais) um marco do desenrolar da revolução sexual, iniciada sensivelmente a meio do século XX em que as pessoas aprofundam e exploram novos níveis de intimidade que até então ou eram desconhecidos ou eram tabu.

O que mais me fez refletir nesta obra foi o complexo estado da relação do Sr. Grey com Ana: na aparência um milionário intelectual, empreendedor, atraente, e com uma visão global do mundo, de mão dada com uma linda jovem recém-licenciada e com sonhos parece ser tudo aquilo que as pessoas querem numa relação. Mas como tudo na vida, as aparências iludem e as coisas nunca são simples. Por detrás daquele rico garanhão extrovertido e com uma carreira de sucesso, esconde-se uma pessoa profundamente traumatizada, assustada e com as suas cicatrizes (as 50 sombras); e por detrás daquela linda mulher culta e elegante, esconde-se uma pessoa profundamente confusa, insegura e que só recentemente saiu da sua zona de conforto, explorando sentimentos que só muito recentemente (e tardiamente tendo em conta os tempos atuais) sentiu.


“Follow your heart, darling, and please, please – try not to over-think things. Relax and enjoy yourself. You are so young, sweetheart. You have so much of life experience yet, just let it happen. You deserve the best of everything.”


O livro faz refletir sobre temas mais de natureza social do que histórico-político, como o fazem os livros que costumo ler. A nossa sociedade cada vez mais é difícil de conseguir encontrar uma relação, seja que natureza for, mas sobretudo as amorosas) onde é difícil ser-se genuíno, onde expor medos e debilidades é conotado como fraqueza e insegurança. A autora consegue, do seu jeito mostrar isso mesmo: que a imagem e aparência de uma pessoa não corresponde forçosamente à sua essência, a imagem de perfeição na nossa sociedade não tem forçosamente de corresponder ao triunfo final de felicidade e que as relações humanas devem ser feitas, como disse um dia Buffon em não ter medo de nos expormos naquilo que realmente somos, e que nós pessoas não somos ilhas. Parte de uma relação saudável deve ser feita numa exposição e partilha recíproca de vida, entre momentos de glória e declino, sendo que por vezes, os protagonistas da história (sobretudo o Sr. Grey) devem procurar e acreditar que é possível construir-se uma relação onde se é genuíno e livre.


“And because of his fifty shades – I am holding myself back. The BDSM is a distraction from the real issue. The sex is amazing, he’s wealthy, he’s beautiful, but this is all meaningless without his love, and the real heart-fail is that I don’t Know if he’s capable of love. He doesn’t even love himself. I recall his self-loathing, her love being the only form he found – acceptable. Punished – whipped, beaten, whatever their relation entailed – he feels undeserving of love. Why does he feel like that? How can he fell like that? His words haunt me: ‘It’s very hard to grow up in a perfect family when you’re not perfect.’”


Não posso afirmar que este seja o meu género literário de eleição. Nunca escondi para os meus leitores o meu gosto pela política e história, tendo procurado nos momentos de final de dia aproveitado as reflexões onde parto destes dois elementos para meditar sobre o estado geral da sociedade. Mas comecei o texto, no mundo da arte, onde incluo as plataformas digitais, existe conteúdo para todos: Tal como Ana e o Sr. Grey e tal como em mundo aspetos da nossa vida, tudo está na verdade em arriscar.


Aproveitando que estou a falar de coisas menos habituais no meu blog, quero aproveitar para deixar o link de uma crítica a um anime que gostei bastante, que achei inspiradora e que reflete algumas das ideias que retirei deste primeiro volume das 50 sombras. 


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Moby Dick (1851) de Herman Melville – Crítica


 

“Uma boa gargalhada é, porém, uma coisa tão apetecida e quase tão rara como um gesto piedoso.”

 

Moby Dick é um romance histórico já amplamente divulgado e adaptado ao cinema, teatro e até mesmo desenho animado. Por desafio (que mais uma vez, só este ano aceitei) de um professor de mestrado, resolvi dar uma chance a este romance histórico e venho aqui de novo ao blog partilhar as minhas conclusões.

A premissa da história é bastante simples. Um barco baleeiro comandado pelo Capitão Ahab que tem como última ambição matar a misteriosa e mítica baleia branca, que representa um elemento de uma certa divindade. Muitas vezes o tom do romance e das narrações de Ismael (o personagem principal) é sombrio, e alterna com certos momentos de euforia. Na verdade, tal é muitíssimo bem retratado por Herman Melville. A vingança é uma das emoções mais primárias e sombrias do ser humano, que muitas vezes nos conduz a atos irrefletidos e de moralidade duvidosa.

“…nenhum homem pode sentir plenamente a sua própria realidade, excepto de olhos fechados; como se as trevas fossem efetivamente o elemento próprio das nossas essências, sendo a luz mais congénita com a nossa natureza material.”

Fruto também da época e local em que o romance foi escrito, podemos encontrar outros elementos interessantes. A característica mais desafiante da leitura desde livro é certamente a descrição da indústria da caça à baleia, que em tempos foi um importante setor da economia internacional. Por vezes a descrição e as reflexões são exaustivas, mas como qualquer romance histórico, é fascinante de ler e presenciar com a nossa imaginação uma realidade de uma vida dura, solitária e nem sempre recompensadora que não há muitos anos muitos dos nossos antepassados enfrentaram.

Moby Dick representa também o elemento de divindade e tentativa de superação humana do divino, o que é também o marco da literatura do século XIX de uma alternância de um pensamento e mentalidade teocentrado para centrar no homem. O que achei interessante quanto ao final, e aqui adicionando um certo elemento de localização no espaço do livro, acredito que o final seria diferente se fosse escrito por um escritor europeu da época. Melville não ignora as suas raízes americanas, cujo país foi fundado por uma base populacional altamente conversadora, tendo com isso influenciado o desfecho, arrisco-me a dizer.

“Todos os homens vivem rodeados de linhas de baleias. Todos nascem com cordas em volta do pescoço; é apenas quando se encontram perante uma morte súbita e rápida que os mortais percebem os perigos silenciosos, subtis e sempre presentes da vida. E se vós sois filósofos, embora sentados numa baleeira, não sentireis no vosso coração mais terror do que se vos encontrásseis sentados diante do fogo da lareira, com um atiçador e não com um arpão ao alcance da mão.”.

Apesar do desfecho, o livro marca também uma posição e estado de espírito da humanidade em relação à natureza, numa época em que o homem tentava superar de todas as maneiras o natural. Atualmente, em larga medida e sobretudo a partir dos anos 70 do século XX, a postura da Humanidade de certa forma alterou-se de uma fase de superação para conversação do meio ambiente, e penso ser esse o motivo pelo qual o livro me foi recomendado em aula.

Moby Dick está claramente entre os meus livros preferidos e é uma obra que me imagino a reler dentro de uns anos. Recomendo vivamente.

 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Como poeira ao vento” (2021) e “O homem que gostava de cães” (2013) – Leonardo Padura (crítica)

 



 

 

O que existe de fascinante em relação à arte é o fator que para além da sua natureza lúdica (o que é, aliás, a sua principal razão de ser), é ser, do mesmo modo, um poderoso instrumento/documento histórico: direta ou indiretamente reflete o estado de espírito do autor que, invariavelmente, nunca se separa integralmente do contexto em que viveu/vive e as grandes questões colocadas na sua época. Esse é o fator que mais me atrai ao romance histórico e aos clássicos da literatura: para além de um enredo mais ou menos fascinante (neste campo, no mundo da literatura, há conteúdo para todos os gostos), descreve muitos mais fatores. Como se costuma dizer, não podemos construir um futuro sem ter conhecimento sólido sobre o passado. Essa é, quiçá, a grande razão de ser da História.

Hoje o que me traz de novo ao blog é um escritor da atualidade, o cubano Leonardo Padura, crítico, mas não dissidente do seu país. Por sugestão de um comentador televisivo que publicitou os seus livros, resolvi dar uma chance, dado que até então conhecia pouco da literatura sul americana, tendo tido só um esporádico contacto com Jorge Amado e Gabriel Garcia Marquez.

Padura, no seu recente romance “Como poeira ao vento”, cujo título é inspirado nesta música, acompanha a evolução de um grupo de amigos cubanos que assistem aos anos finais da guerra fria e os desenvolvimentos históricos que aconteceram no país e levaram a uma separação do grupo. Uns ficaram em Cuba, outros foram para a Europa, outros arriscaram a travessia para os EUA, mas em comum com todos eles foi que na verdade o peso das nossas raízes é forte e apesar de cada qual viver em contextos político económicos diferentes, na verdade aquelas grandes questões da humanidade atual estão refletidas para todos, o que me leva a pensar que talvez não exista assim tanta diferença entre povos.

“-Aconteceu-nos tudo – continuou Bernardo, recusando-se a baixar o tom de voz - , e sem nos pedir licença. Os sonhos agora são insónias ou pesadelos. Aconteceu-nos termos perdido. Este é o destino de uma geração – sentenciou, recuperou o copo com uma mão já trémula e, de um gole, acabou a bebida. – E assim estamos companheiros, irmãos de luta: de derrota em derrota … Até à vitória final!”. Como poeira ao vento (2021)

Em “O homem que gostava de cães”, um romance ficcional sobre Ramon Mercader e Trótski, Padura faz uma enorme análise sobre a evolução dos vários momentos do século XX, passando pela tomada de poder de Estaline da URSS, a caótica guerra civil espanhola, o exílio e assassinato de Trótski, a segunda guerra mundial e os anos 60, 70 e 80 (o início do fim da guerra fria). Padura transmite a evolução do estado de espírito da humanidade, desde uma enorme euforia até uma fase de desencanto e descontentamento. Por isso os romances acabam por se complementar um e outro: “Como poeira ao vento” acompanha a sociedade do século XXI no rescaldo que foi o intenso século XX e uma certa falência/descrédito das ideologias e triunfos finais da humanidade, para uma humanidade que hoje está a acusar a ressaca de toda a nossa história recente e procura um novo rumo.

“A tão aguardada mudança de século e milénio passou e o mundo, transformado num sítio cada vez mais hostil, com mais guerras e bombas e fundamentalismos de todas as espécies (como era de esperar, depois de atravessar o século XX), acabou por ser tornar para mim num espaço alheio, repelente, com que fui cortando amarras, enquanto me deixava levar à deriva pelo ceticismo, a tristeza e a certeza de que a solidão e o desamparo mais absoluto espreitavam ao virar da esquina.” O homem que gostava de cães (2013). 

Padura consegue também, numa escrita acessível, mostrar traços das características atuais dos romances, mantendo sempre toda esta mensagem: uma escrita cativante, com suspense, crime, traços de sensualidade e emoções fortes que prendem o leitor do início ao fim.

Acredito piamente que Leonardo Padura é dos melhores escritores da atualidade e tenho fé que futuramente ganhará um prémio Nobel. Mas independentemente disso vejo nele potencial para que os seus romances venham a ser lidos daqui a 50 e 60 anos e conseguiram fornecer às próximas gerações informação preciosa de aquilo que está a ser a nossa vivência e os nossos gostos literários. Espero que a História faça essa justiça.

domingo, 30 de outubro de 2022

A Cartuxa de Parma (1839) Stendhal – Crítica

Quando iniciei este blog, algures em 2018, a escolha do título não foi inocente. Tenciona usar esta página como um meio de treinar a minha escrita e de aproveitar os finais de dia, onde normalmente gosto de tirar umas horas só para mim, para refletir, meditar sobre acontecimentos do dia a dia, memórias que não tenho sempre presentes e eventuais desabafos ou críticas sobre eventos da história atual.

Com o tempo, o blog ficou mais vocacionado para política internacional africana, sobretudo do Congo, um dos temas que me faz muito refletir sobre o estado da sociedade.

Mas hoje, voltando ao espírito original do blog, vou fazer algo diferente e aproveitar esta página para sair da minha zona de conforto e arriscar falar sobre um livro que me foi recomendado em 2014 (era eu um jovem aluno na licenciatura em Direito) por um estimado amigo, que infelizmente faleceu em 2017.

Este ano, tal como milhões de pessoas por todo o mundo, estive infetado com Covid-19 no passado mês de fevereiro, tendo por isso passado 5 dias em isolamento no meu quarto. Felizmente não tive grandes sintomas, e por isso quis aproveitar o meu tempo, não só em séries e redes sociais, mas também, finalmente, depois de tantos anos, ler o livro que o meu estimado amigo me recomendou e partilhar convosco as minhas conclusões.

A Cartuxa de Parma é um reflexo da personalidade do autor e um marco histórico na transição de estilos literários de um romantismo para o realismo do século XIX. Podemos dividir o livro em duas metades, sempre acompanhado o protagonista, Fabrizio. Idealista, romântico, ingénuo, sente uma forte e irresistível admiração por Napoleão, tendo partido para a batalha de Waterloo como voluntário, cujo desfecho é por nós conhecido.

“A guerra não era então aquele nobre e comum arrebatamento de almas sedentas de glória que ele tinha imaginado pelas proclamações de Napoleão”

O ponto que para mim foi mais interessante, e creio ser esse o motivo pelo qual o meu estimado amigo me ter recomendado o livro, foi a perspetiva jurídica que o livro me abriu e, apesar de com pena minha não ter lido o livro mais cedo, acredito que por outro lado, naquelas idades não teria a mentalidade certa para absolver o conteúdo. Fabrizio, de ricas famílias italianas, após a desastrosa experiência militar envolve-se num homicídio e na segunda parte do livro é precisamente focada no “modos operandi” do processo criminal. Neste ponto, faço uma ressalva para juristas: frequentemente existe uma presunção nossa de que a realidade se reconduz ao que está na lei, e que o mundo seria o absoluto caos sem os juristas e a realidade (ou devo dizer, a ilusão de realidade) que nós salvaguardamos. Por isso é muito fácil na nossa classe e posição ter uma posição de altivez perante outros, o que na verdade é uma ilusão. Stendhal , em termos intemporais, demonstra-nos que a aplicação do direito nem sempre funciona no rígido e presunçoso raciocino silogístico ou matemático que julgamos, sendo que tanto naquela altura como hoje, muita (ou diria a totalidade) da aplicação do direito é feita de moldes puramente subjetivos e contextualizados: porque a letra da lei é dúbia; por detrás do aplicador do direito existem condicionantes pessoais e políticas que se traduzem em ambições ou ajustes de contas; e porque os meios de se fazer política e de aplicação da justiça muitas vezes se confundem uma com a outra, levando a importantes e intemporais questões sobre o que é verdadeiramente a justiça, o que é verdadeiramente o direito e o que é verdadeiramente a política.
Na sociedade atual, em comparação com as cidades estado italianas novecentistas, a análise feita por Stendhal não só é atual como o estado da realidade que ele descreveu, aprofundou-se. Pessoalmente, isso não era algo que aos 19 anos conseguia concluir, e apesar de sentir a falta do meu amigo e não ter discutido isso com ele, dou graças por ter tido aqueles 5 dias confinado em fevereiro e ter lido o livro.

“O fiscal-geral era alto, tinha belos olhos muito inteligentes, mas a cara picada de bexigas. Quanto ao espírito, tinha-o, e muito, e do mais fino. Passava por dominar perfeitamente a ciência do Direito, mas era sobretudo pela rabulice que ele brilhava. Fosse por que aspeto fosse que um caso se apresentasse, encontra facilmente, e em poucos instantes, meios muito bem escorados no Direito para chegar a uma condenação ou a uma absolvição. Era sobretudo rei nas subtilezas de procurador.”

Como crítico, puxando para uma vertente mais negativa, o livro é por vezes denso nas intrigas da corte, e o final é eventualmente demasiado apressado e abrupto. Pode-se dizer, talvez porque o autor se cansou da história. Ou então, se quisermos ser mais ousados, podemos dizer que talvez toda aquela intriga da justiça, demora da aplicação e demora das decisões, no fim se reduza a nada, o que é algo que a nós (sobretudo aos juristas, onde me incluo), deve conduzir-nos um pouco à realidade.

Por todos estes motivos, recomendo a leitura do livro, querendo terminar o texto com uma homenagem ao meu amigo António, agradecendo o seu precioso contributo na minha vida, e com uma mensagem de saudade. 

domingo, 14 de agosto de 2022

A missão de Paz da ONU na República Democrática do Congo (MONUSCO) – haverá solução?

Protestos em julho de 2022 contra o MONUSCO em Goma.

Recentemente, na cidade de Goma, cerca de 7 pessoas foram mortas durante protestos contra a missão de paz da ONU no Congo, em que se exigia a sua saída do país. Por esse motivo, e dada uma nova escalada de tensão política e militar no país, tendo como um dos epicentros, a região do Kivu, achei que seria oportuno analisar os resultados e os problemas do MONUSCO no Congo

Em primeiro lugar, a missão tinha logo um problema de natureza militar. Geralmente, talvez por tendências jornalística, sensacionalistas e até políticas, existe uma tendência cívica de tomar um partido e escolher um lado “bom” e um lado “mau” das guerras. Isso é muito difícil quando analisamos a segunda guerra do Congo. Como tive oportunidade de escrever aqui, o conflito armado rapidamente chegou a um impasse em que Laurant Kabila não tinha capacidade de expulsar a coligação militar liderada pelo Ruanda, nem o Ruanda tinha capacidade militar de tomar Kinshasa, ao que (sobretudo a partir de 1999) os “blocos” armados dividiram-se em dezenas de milícias, cada uma controlando uma região, procurando lucrar da grande riqueza natural e mineral do país. Num contexto assim, era difícil uma tomada de posição militar, tanto pelo lado do governo de Kinshasa, cuja atuação nem sempre foi diferente da dos rebeldes, como pelo lado dos invasores estrangeiros. Portanto, numa primeira abordagem, caímos numa guerra complexa (e talvez por isso com pouco impacto nas nossas sociedades, dado não ser um conflito jornalisticamente simples de explicar) em que a comunidade internacional, pela dimensão que as coisas assumiram, teve de tomar posição. A segunda guerra do Congo juridicamente terminou em 2003 com os acordos de Sun City, pese embora que o estado de guerra de facto continua até aos dias de hoje no leste do país, sendo que esta missão, em quase 20 anos de existência, apesar de ter sido a mais numerosa e dispendiosa alguma vez feita, tem poucos resultados a apresentar. 

Em segundo lugar, pelo fator de geográfico, a missão de paz da ONU é uma missão particularmente difícil: estamos a falar de um enorme teatro de operações, com infraestruturas escassas ou inexistentes, e que cuja atuação ativa militarmente implica uma enorme frente de batalha com vários movimentos de guerrilha, dado a presença de numerosas milícias armadas na região. Tudo isso torna também difícil qualquer tipo de manobra militar. Ainda por mais, nos termos de Direito Internacional da Guerra, a missão de paz da ONU no Congo são os chamados “Peace Keepers” e por isso têm uma abordagem mais passiva e de manutenção de segurança, o que causa um enorme descontentamento pois num teatro de guerra destas características, o surgimento de resultados torna-se difícil. 

Finalmente, o próprio MONUSCO não pode eximir-se de responsabilidades pelos resultados apresentados: pelo contrário, registos de violações, contrabando de armas e de minérios têm sido também uma constante por parte de soldados integrantes desta missão de paz, o que é um argumento forte o suficiente para questionar a sua existência e utilidade. 

Umas conclusões finais são importantes para reflexão: Será que o insucesso da missão de Paz no Congo e a sua retirada pode ser vista em termos similares aos da saída dos EUA do Afeganistão? Terá a ONU capacidade para admitir que a sua maior e mais cara missão de paz teve pouco efeito no leste da República Democrática do Congo? Será que o Direito Internacional e a estruturação das missões de paz humanitárias necessitam de uma nova reponderação? 

Por enquanto o futuro do Congo continua difícil: há indícios do ressurgimento da rebelião do M23 (que em 2012 expulsou as tropas do MONUSCO do seu quartel-general em Goma), e o risco de uma nova guerra civil face a um clima de tensão entre Joseph Kabila e Félix Tshisekedi são pontos a considerar. Resta esperar para ver futuros desenvolvimentos

segunda-feira, 9 de maio de 2022

O Balancé do Alumínio e a Cocaína de Conacri parecem ter chegado à Europa (Atualização Política da República da Guiné)

 

Protestos em Conacri contra a Junta Militar (fevereiro 2022)

No passado mês de dezembro, aquando do meu regresso a este blog, escrevi sobre o golpe de Estado feito em Conacri a 5 de setembro de 2021. Passados uns meses, achei que seria oportuno fazer um breve artigo com uma atualização da situação político social no país.

 

Em termos políticos duas notas são relevantes: muito recentemente a Junta Militar que tomou o poder, liderada pelo Coronel Doumbouya anunciou um período de transição de poder dos militares para os civis de cerca de 3 anos, contrariando eventuais expectativas internas quanto a uma transição de poder transparente e ligeira, o que causou um certo desconforto perante uma muito provável normalização do estado de exceção da ordem política no país. Esse desconforto já se fez sentir nos últimos meses, sobretudo na capital Conacri onde já há registo de manifestações contra a Junta Militar e confrontos com as forças de segurança. Igualmente relevante foi o anuncio, no passado dia 4 de maio, do início do julgamento do ex presidente Alpha Condé, juntamente com cerca de três dezenas de antigas figuras de estado   por crimes praticados durante o exercício da sua presidência, nomeadamente tortura, homicídio, corrupção, autoritarismo e abusos sexuais. Deste julgamento, pese embora de forma alguma se exonere o ex presidente de atuações juridicamente (e politicamente!) muito censuráveis, na verdade, a prática corrente das situações de transição de poder em África, parecem indicar que este julgamento não se irá fazer tanto num prisma jurídico-processual, mas mais num prisma político, feito à medida pela nova estrutura de poder em Conacri emergente do golpe de Estado e dentro da sua noção de justiça.

Terminando este artigo com uma perspetiva mais internacional dos eventos em Conacri, cumpre falar do bauxite/alumínio no comércio internacional, bem como da questão sobre hipotética ligação dos golpistas de setembro aos carteis de droga sul americanos.



Quanto à bauxite, matéria prima essencial para o fabrico do alumínio, um material extremamente versátil e com diversas aplicações técnico industriais, podemos verificar que o golpe de Estado aconteceu numa fase de acentuado aumento do preço do alumínio, seguindo de uma ligeira estagnação e de uma nova subida. Deste gráfico verifica-se que não só a Guiné não pode dar ao luxo de manter as fronteiras fechadas (e consequentemente o comércio congelado) por muito tempo, dada a sua dependência da exportação das matérias primas. Em termos mas genéricos, com este caso da Guiné, podemos verificar que as economias africanas (e as demais demasiado dependentes do preço dos minérios) vivem em permanente oscilação: se no início do ano de 2022, até derivado do conflito da Rússia (um dos principais parceiros internacionais da Guiné Conacri) com a Ucrânia, tivemos um abrupto aumento do valor do alumínio, agora a tendência tem sido a de descida, o que invariavelmente afeta a vida económica do país.



Quanto ao fenómeno da droga, de modo algum se pode afirmar que a suspeita de ligação entre os carteis de droga sul americanos e a elite política de Conacri começou com o golpe do Coronel Doumbouya, mas vários órgãos de polícia estrangeiros (nomeadamente dos princípais países europeus) têm detetado um crescente aumento das quantidades de cocaína e ópio chegados à Europa via os países do Golfo da Guiné. Possivelmente a instabilidade verificada na Guiné facilitou a atividade dos carteis de droga no país e que com um contexto político mais favorável, aproveitaram para melhor escoar a sua droga para os mercados internacionais. O crescimento dos carteis de droga, não obstante os diversos problemas de segurança e de saúde que causam tanto nos países de cultivo, como os de transporte, como os de consumo , parece ser um indicador a ter em conta na análise política dos países desta região africana, que vão andar ao sabor das instabilidades e dificuldades destas estruturas do mundo do crime organizado.

O futuro em Conacri parece sombrio. Resta aguardar por futuros desenvolvimentos da evolução política no país.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

República Democrática do Congo: novo presidente, velho país

 

Vista panorâmica de uma das principais artérias de Kinshasa, a Avenida 30 de junho.

Desde que comecei este blog, o assunto sobre o qual mais publiquei e tive mais leituras foi sobre a República Democrática do Congo. Por esse motivo, e aproveitando este meu regresso ao blog, achei que talvez não fosse má ideia fazer um apanhado geral sobre a governação do Presidente Félix Tshisekedi, agora que no dia 30 de janeiro fez 3 anos desde a sua tomada de posse.

Inspirando no livro de José de Oliveira Cosme, «Tristezas e Alegrias do Senhor Zacarias», vou aproveitar o título para tentar adaptar ao Presidente Tshisekedi. Adianta-se desde já que as mudanças no país foram limitadas.


Imagens da Assembleia Nacional do Congo, que é um dos principais epicentros das dificuldades de Tshisekedi.

As Tristezas.

          A surpreendente vitória de Tshisekedi nas últimas eleições de 30 de dezembro de 2018 não correspondeu a uma viragem política congolesa. Apesar de ter concorrido como dirigente de um dos maiores partidos da oposição (a UDPS), na verdade a sua governação não é possível (em função das representações partidárias no Senado e na Assembleia Nacional) sem uma coligação com o FCC (o partido controlado pelo ex presidente Joseph Kabila). A influência de Kabila e do seu grupo é visível por todo o país ao controlar setores chave como a segurança, a defesa e a justiça, que são extremamente importantes para a vida política do país. Assim sendo, mesmo que se espere ou possa imputar uma certa boa vontade política ao novo presidente, o que é facto é que a sua margem de manobra acaba por ser limitada, confrontado com «rede de poder» de Joseph Kabila com a qual não contava. Por esse motivo, como refere o antigo primeiro-ministro Bernardin Mungul Diaka, «o condutor mudou, mas o veículo é o mesmo». As negociações para as grandes reformas estruturais no país são complicadas e em muitos pontos, destacando a reforma do sistema de Estado e governo, parecem ter chegado a um impasse. Mesmo com o tom conciliador e diplomático que Tshisekedi tenta ter, as vozes de descontentamento e desilusão com a sua presidência tendem a crescer.


Félix Tshisekedi reunido com o Presidente francês Macron.


As Alegrias.

        Os moderados triunfos de Tshisekedi como presidente têm sido feitos no plano diplomático e económico (ainda que neste campo haja efeitos agridoces). Começando com o plano diplomático, um dos esforços do presidente tem sido o de recuperar a imagem internacional do país, tendo já feito viagens diplomáticas importantes aos seus parceiros internacionais, nomeadamente os EUA, França, China, Rússia, e dentro de África aos vizinhos Angola, Ruanda, Tanzânia, Uganda, entre outros. O melhorar de relações diplomáticas que se fez no plano geral, tem (ainda que timidamente) melhorado a imagem do país, e isso está a fazer-se em dois domínios: por um lado o presidente que feito um esforço diplomático internacional para o auxílio de produção e vacinação contra a Covid-19 para os países africanos, que ainda têm taxas de vacinação muito baixas, sobretudo o próprio Congo que tem uma população de mais de 80 milhões de pessoas e uma taxa de vacinação inferior a 5%; por outro lado, na diplomacia financeira, o país tem melhorado as relações com o FMI (com o qual as relações de cooperação estiveram suspensas alguns anos), o Banco Mundial e o Banco Africano de Desenvolvimento, tentando canalizar algum investimento internacional para o país. Kinshasa tem-se também tornado numa zona de crescente dinamismo económico (sobretudo por influência de jovens empresários com formação dos estrangeiro e/ou filhos de imigrantes congoleses por todo o mundo), ainda que as condições na cidade continuem particularmente complicadas, seja em termos de infraestruturas, saneamento, rede elétrica, entre outras. Os efeitos, contudo, ainda são tímidos, e a instabilidade da situação do país pode levar a uma retração deste fenómeno de investimento, pelo que ainda é prematuro apresentar este fenómeno como um triunfo.


Imagens de Salim Muhammad num vídeo de propaganda islamita no leste do Congo. Os jihadistas são um grupo em crescente ascensão nesta zona do país.


Novos e velhos problemas.

Falando agora de um velho problema, importa fazer uma nota breve sobre a zona do Kivu (cuja situação merece um artigo, a fazer-se adiante), mas sobre a qual a situação parece estar a complicar-se. A «transição digital» que foi apressada por necessidades derivadas da doença Covid-19, pode ser um dos fatores explicativos do aumento da atividade militar no leste do Congo nestes últimos anos, em virtude de uma maior necessidade das matérias-primas lá encontradas (nomeadamente o cobalto). Mas dois outros fatores parecem ter-se juntado aqui: por um lado, o fator da droga (um problema crescente em África, como falei no artigo da Guiné Conacri) parece estar a desempenhar um papel crescente no conflito do Kivu (e cujo consumo tem aumentado por todo o país), servindo não só como efeito psicótico para os soldados, mas também como meio de financiamento das várias milícias que operam nesta zona do país, diversificando o seu «portfólio» e consequentemente fortalecendo a sua presença; por outro lado, temos tido o crescimento da presença islamita nesta região, sobretudo na milícia AFD, com a presença de ex combatentes ou simpatizantes regionais do Daesh, que após as pesadas derrotas militares na Síria e no Iraque, têm procurado por todo o continente africano (desde o Mali até Moçambique) um novo território para expandir a sua influência. Dois acontecimentos em particular merecem reflexão: o primeiro sobre o misterioso assassinato do embaixador italiano no Congo, cujas motivações e causas permanecem ainda desconhecidas; e o segundo com a recente captura do jihadista Salim Muhammad, autor de vários vídeos de propaganda e de execuções efetuadas pelo grupo islamita.

    O futuro do Congo continua hoje muito longe de parecer brilhante. Resta agora aguardar por futuros desenvolvimentos