“O homem, em ligação com a vida comum da humanidade, surge como sujeito às leis que determinam essa vida. Mas esse mesmo homem, independentemente dessa ligação, surge como livre. Como deve ser encarada a vida passada dos povos e da humanidade – como produto da atividade livre ou não livre dos homens? Esta é a questão que a história coloca.”
Recordo que em
2014, aquando de uma optativa do curso de Direito chamada História das Relações
Internacionais, incontornavelmente foi tema de grande atenção e interesse a
figura de Napoleão Bonaparte e o Congresso de Viena. Meses antes, nas férias de
verão, tinha dado as minhas primeiras chances aos clássicos russos, começando
pelo “o Jogador” e o “Demónios” de Dostoievski, mas sabendo da temática e por o
Guerra e Paz ser incontestavelmente uma das grandes obras jamais produzidas
pela literatura mundial, resolvi aventurar-me neste longo livro.
Guerra e Paz
destaca-se pela sua singularidade: rapidamente alterna entre vários planos
narrativos diferentes, em datas diferentes. A história começa em 1805, tem o
seu ponto alto em 1812 aquando da desastrosa campanha francesa na Rússia, e
termina o plano narrativo em 1820. Entre os planos narrativos destacam-se os
personagens Piotr “Pierre” Bezukov, o príncipe Andrei Bolkonski e a sua
família, tal como a família Rostov, destacando os irmãos Nikolai e Natacha. É também
complexo porque entre os planos narrativos alterna com um plano de profundas reflexões
do autor, que analisa a história como disciplina, os acontecimentos passados e
o seu impacto sobre o seu presente. Por esse motivo o Guerra e Paz, arrisco-me
a dizer, é uma obra que porventura terá servido de advento ao que viria ser o
modernismo literário de século XX pois não se enquadra numa só categoria típica
literária, sendo que pode ser visto como um romance de amor, romance histórico,
livro de filosofia, livro de estratégia militar e guerra, ou até mesmo ensaio
de ciência política ou história.
Há imensos
aspetos que poderia destacar do romance. A sua narrativa interessante já foi
objeto de várias adaptações ao cinema, sendo que a que mais gostei foi a mini série da BBC de 2016 com Paul Dano e Lily Jane, sendo que cada plano narrativo tem a
capacidade de viciar o autor em saber o que vai acontecer a seguir àquela
personagem, algo difícil de fazer numa só obra com tantos planos de ação.
O que quero retirar
deste artigo e o que fez deste livro um dos meus preferidos durante muito tempo
e o motivo pelo qual 7 anos depois de o ter lido continuar a ter as suas conclusões
muito presentes na minha memória é exatamente o que levo do livro para o meu
dia-a-dia. Nunca escondi o meu gosto pela História, e acho que o interesse e
entusiasmo da disciplina deve ser difundido, até porque, como Tolstói bem
escreve, somos nós, agentes comuns que a fazemos. A segunda parte do epílogo do
Guerra e Paz são precisamente as reflexões finais de Tolstói sobre o objeto da
história: serão aqueles grandes decisores? Napoleão que ordenou a invasão à Rússia?
Hitler e as campanhas sangrentas pela Europa nos anos 30 e 40? Johnson e a
intervenção americana no Vietname? Ou talvez Vladimir Putin e a atual intervenção
na Ucrânia?
Frequentemente
existe uma tendência social de canalização de responsabilidades para os órgãos decisores,
sendo que muitas vezes tais ordens são executadas em grande medida pelos
inferiores hierárquicos. Afinal, foi Putin diretamente que lançou um míssil a
Kiev?
“A nossa noção de liberdade e necessidade diminui e aumenta gradualmente, conforme a maior ou menor ligação com o mundo exterior, o maior ou menos afastamento no tempo e a maior ou menos dependências das causas, em que observamos o fenómeno da vida humana.”
Tolstói
demonstra-nos que a liberdade conjugada com a razão e a necessidade são o objeto
da história dos povos e, em termos avançados para a época, desconstrói a razão
e os elementos das ciências naturais como única e derradeira fonte da história,
algo altamente minoritário entre os pensadores da época. Tal pensamento dá
muito que refletir no ano de 2022, na sociedade atual.
“Só nesta nossa presunçosa época de popularização do conhecimento, graças ao mais forte instrumento da ignorância (a difusão da imprensa), a questão do livre-arbítrio foi levada a um terreno em que não se pode já colocar a própria questão. No nosso tempo, a maioria das chamadas pessoas avançadas, ou seja, uma multidão de ignorantes, aceitou as obras dos naturalistas, que tratam apenas um dos aspetos da questão, como a solução de todo o problema.”.
Não resisto em
fazer um paralelismo com um personagens de One Piece, uma série que sigo, destacando
o almirante Kizaru (Borsalino): ele é um personagem que muito representa a
nossa sociedade – está inserido numa sociedade complexa e pouco linear, em que
muitas vezes surgem por fontes superiores ordens completamente injustas e cruéis,
sendo que ele não as toma, mas tão pouco as questiona, mantendo uma postura
sarcástica e descontraída dizendo que estava só a fazer o seu trabalho e “ordens
são ordens”. Quando Tolstói nos leva a concluir que o exercício da nossa liberdade
dentro do contexto em que vivemos é o verdadeiro objeto da História, transmite
em termos ainda hoje atuais uma responsabilidade que temos como cidadãos e como
agentes da História, uma responsabilidade que muitas vezes, tal como o
almirante Kizaru, preferimos ignorar porque é só o nosso trabalho. Num mundo
como o nosso de 2022, com níveis de literacia diferentes, acesso diferente a
informação e com recursos que a sociedade novecentista seria incapaz de
conceber, este desafio que Tolstói nos fez e nos responsabiliza mais do que
nunca, faz com que cada um de nós coloque a mão na consciência e se pergunte:
que tipo de sociedade queremos? Que tipo de justiça queremos para o nosso
mundo?
“A liberdade é aquilo que é examinado. A necessidade é aquilo que examina. A liberdade é o conteúdo. A necessidade é a forma. (…) E só com a sua união se obtém uma clara representação da vida do homem.”
Tal como os
protagonistas do Guerra e Paz, destacando Pierre Bezukov, que no seu contexto
foi várias vezes desafiado com estas questões, também nós temos essa
responsabilidade. E este é um dos motivos pelos quais o Guerra e Paz permanece
na minha memória como uma das melhores experiências literárias que já tive.
Escrita exemplar, como sempre faz nos mergulhar num turbilhão de perguntas e reflexão. A transposição para a sociedade moderna e deveras fascinante. E optima referência do one piece.
ResponderEliminarObrigado meu amigo :) é sempre um gosto ter esse feedback , obrigado por tudo
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