O que existe de fascinante em relação à arte é o fator
que para além da sua natureza lúdica (o que é, aliás, a sua principal razão de
ser), é ser, do mesmo modo, um poderoso instrumento/documento histórico: direta
ou indiretamente reflete o estado de espírito do autor que, invariavelmente,
nunca se separa integralmente do contexto em que viveu/vive e as grandes
questões colocadas na sua época. Esse é o fator que mais me atrai ao romance
histórico e aos clássicos da literatura: para além de um enredo mais ou menos
fascinante (neste campo, no mundo da literatura, há conteúdo para todos os
gostos), descreve muitos mais fatores. Como se costuma dizer, não podemos
construir um futuro sem ter conhecimento sólido sobre o passado. Essa é, quiçá,
a grande razão de ser da História.
Hoje o que me traz de novo ao blog é um escritor da
atualidade, o cubano Leonardo Padura, crítico, mas não dissidente do seu país.
Por sugestão de um comentador televisivo que publicitou os seus livros, resolvi
dar uma chance, dado que até então conhecia pouco da literatura sul americana,
tendo tido só um esporádico contacto com Jorge Amado e Gabriel Garcia Marquez.
Padura, no seu recente romance “Como poeira ao vento”,
cujo título é inspirado nesta música, acompanha a evolução de um grupo de
amigos cubanos que assistem aos anos finais da guerra fria e os
desenvolvimentos históricos que aconteceram no país e levaram a uma separação do
grupo. Uns ficaram em Cuba, outros foram para a Europa, outros arriscaram a
travessia para os EUA, mas em comum com todos eles foi que na verdade o peso
das nossas raízes é forte e apesar de cada qual viver em contextos político
económicos diferentes, na verdade aquelas grandes questões da humanidade atual
estão refletidas para todos, o que me leva a pensar que talvez não exista assim
tanta diferença entre povos.
“-Aconteceu-nos tudo – continuou Bernardo, recusando-se a baixar o tom de voz - , e sem nos pedir licença. Os sonhos agora são insónias ou pesadelos. Aconteceu-nos termos perdido. Este é o destino de uma geração – sentenciou, recuperou o copo com uma mão já trémula e, de um gole, acabou a bebida. – E assim estamos companheiros, irmãos de luta: de derrota em derrota … Até à vitória final!”. Como poeira ao vento (2021)
Em “O homem que gostava de cães”, um romance ficcional
sobre Ramon Mercader e Trótski, Padura faz uma enorme análise sobre a evolução
dos vários momentos do século XX, passando pela tomada de poder de Estaline da
URSS, a caótica guerra civil espanhola, o exílio e assassinato de Trótski, a
segunda guerra mundial e os anos 60, 70 e 80 (o início do fim da guerra fria).
Padura transmite a evolução do estado de espírito da humanidade, desde uma
enorme euforia até uma fase de desencanto e descontentamento. Por isso os
romances acabam por se complementar um e outro: “Como poeira ao vento”
acompanha a sociedade do século XXI no rescaldo que foi o intenso século XX e
uma certa falência/descrédito das ideologias e triunfos finais da humanidade,
para uma humanidade que hoje está a acusar a ressaca de toda a nossa história
recente e procura um novo rumo.
“A tão aguardada mudança de século e milénio passou e o mundo, transformado num sítio cada vez mais hostil, com mais guerras e bombas e fundamentalismos de todas as espécies (como era de esperar, depois de atravessar o século XX), acabou por ser tornar para mim num espaço alheio, repelente, com que fui cortando amarras, enquanto me deixava levar à deriva pelo ceticismo, a tristeza e a certeza de que a solidão e o desamparo mais absoluto espreitavam ao virar da esquina.” O homem que gostava de cães (2013).
Padura consegue também, numa escrita acessível, mostrar
traços das características atuais dos romances, mantendo sempre toda esta
mensagem: uma escrita cativante, com suspense, crime, traços de sensualidade e
emoções fortes que prendem o leitor do início ao fim.
Acredito piamente que Leonardo Padura é dos melhores
escritores da atualidade e tenho fé que futuramente ganhará um prémio Nobel.
Mas independentemente disso vejo nele potencial para que os seus romances venham
a ser lidos daqui a 50 e 60 anos e conseguiram fornecer às próximas gerações informação
preciosa de aquilo que está a ser a nossa vivência e os nossos gostos literários.
Espero que a História faça essa justiça.
Sem palavras. Absolutamente sensacional. Muitos parabéns pela análise e partilha destes tesouros literários.
ResponderEliminarObrigado ;)
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