terça-feira, 2 de janeiro de 2024

A Desorganização Organizada: eleições na República Democrática do Congo (dezembro 2023)

 


Começo este ano de 2024 com um tema que os leitores do blog mais antigos certamente se recordam, mas que há algum tempo não vinha ao blog: o Congo. Num ano que vai ser marcado por diversos atos eleitorais por todo o mundo, achei que não fosse má ideia começar o ano por analisar brevemente as eleições de dezembro na República Democrática no Congo.

Como nota preliminar, importa notar que o sistema eleitoral do Congo é bastante peculiar: o presidente é o vencedor da eleição por maioria qualificada e com base na Assembleia Nacional e as várias Assembleias/Órgãos de Poder Local forma o seu governo. Por isso temos logo aqui uma característica: as eleições no Congo misturam, transpondo para a realidade portuguesa, as eleições presidenciais, legislativas e autárquicas, portanto muito está em jogo.

Como outra nota preliminar, mais como natureza de lembrete, o Congo tem um terrível histórico em transições de poder. A eleição de 2018, com toda a instabilidade, confrontos e tensões internas, é tida como a primeira transição pacífica de poder desde a independência do país em 1960. Efetivamente, tendo em conta as restantes transições (em que chefe de Estado em regra fugia para o exílio ou era assassinado), a continuidade do ex presidente Joseph Kabila como senador vitalício foi surpresa, tendo em conta o histórico que o país tem. Foi então com surpresa geral que vimos como vencedor das eleições o atual presidente Félix Tshisekedi assumir as funções como chefe de Estado.

O primeiro mandato do novo presidente teve sinais mistos: marcado pelas tensões com os membros “Kabilistas” no governo e no parlamento, Tshisekedi a ritmo procurou marcar o seu espaço no palco político congolês. Ao mesmo tempo que Tshisekedi procurava o seu espaço, internamente viu a emergência de um novo foco de rebelião no Kivu (sobretudo o movimento rebelde M23) e os islamitas no Ituri, as províncias do cobalto. Isso deu origem a (mais uma) terrível vaga de refugiados, sendo que a ONU contabiliza cerca de 7 milhões de congoleses que vivem em campos de refugiados no leste do país.

No campo económico, o país tem crescido acima da realidade africana, mas os níveis de desenvolvimento são ainda muito reduzidos, tendo em conta a enorme riqueza mineral do país e o baixíssimo nível de vida do povo congolês, um dos mais pobres do mundo. A insatisfação mantém-se nas condições de segurança e, sobretudo, na integridade territorial do país, consecutivamente violada por diversos movimentos rebeldes apoiados por atores de todo o mundo. Ao mesmo tempo, a insatisfação com a missão de paz no país (MONUSCO) demonstra as enormes fragilidades que ainda hoje a ONU tem, sendo que um dos pontos mais sensíveis na política interna congolesa é o da avaliação da saída dos capacetes azuis do Congo, um tema que já abordei.

No que toca ao campo interno, os índices de democracia no país mantiveram-se muito tímidos: sinal disso foi a proibição das manifestações de contestação do ato eleitoral após a divulgação dos primeiros resultados.

É, portanto, neste contexto que cerca de 70 milhões de eleitores foram chamados às urnas, numas eleições que alguns setores da oposição e Igreja Católica caracterizaram como uma desorganização organizada: em virtude da vaga de refugiados e deterioração das condições de segurança, milhões de congoleses não puderam exercer o seu direito de voto. Por outro lado são de destacar imensos problemas logísticos no país na realização do ato eleitoral: a abertura das urnas e assembleias de voto foi muito irregular por todo o país, tendo ocorrido a horas diferentes e dias diferentes, sendo que houve muitos locais onde não chegou a acontecer; milhões de eleitores ficaram excluídos do recenseamento eleitoral pelas condições de conservação dos cartões de eleitores; diversos jornalistas apontam para vícios nas máquinas de votação eletrónica (já usadas nas eleições de 2018), sendo que a oposição apontou para um enorme risco de fraude eleitoral. Neste momento, a comissão eleitoral aponta para uma taxa de participação nas eleições a rondar os 44%, sendo que dos resultados divulgados há uma vantagem esmagadora para a reeleição do atual presidente em números superiores a 70% dos votos.

A democracia congolesa, face ao exposto, mostrou que ainda tem um longo caminho a percorrer: é muito difícil fazer-se um ato eleitoral democrático e livre se há uma gritante falta de infraestrutura, organização, vontade política, recursos financeiros e segurança. Uma democracia faz-se com instituições sólidas, e apesar de saudar que as eleições tivessem sido realizadas nos termos constitucionalmente definidos, receio que outro cenário que não fosse a vitória esmagadora de Tshisekedi estivesse condenada desde início. Resta ver como será o segundo mandato do atual presidente e veremos qual será o seu legado na História da República Democrática do Congo.

Geralmente termino os artigos sobre o Congo num tom pessimista, mas neste artigo quero fazer algo diferente. Apesar de toda a instabilidade do país, há algo verdadeiramente que queria destacar, uma vontade e ativismo político que o povo congolês tem demonstrado. O número de candidatos a estas eleições e o crescente crescimento do ativismo cívico (seja o movimento estudantil “Lucha” ou, o que destaquei na imagem deste artigo, o movimento “o meu voto não está à venda”), são sinais que a cultura democrática começa a instalar no Congo, bem como uma vontade de criação de um futuro diferente do que tem sido toda a história do país. Talvez, a solução para os problemas do Congo já esteja ou já se comece a formar no seu povo, que merece um futuro de paz e prosperidade.

 

 

 

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