quarta-feira, 15 de março de 2023

Avaliações de desempenho, meritocracia ou sociopatia? (Marco Garcia)

 


Prólogo: Aldous  Huxley na sua obra prima “Admirável Mundo Novo”, escrito em 1932 anunciava um futuro distópico em 700 anos, de uma sociedade surreal e formada com base na distinção e seleção, desde os genes, à condição social e categoria. O triunfo total do determinismo e do raciocínio matemático-maquiavélico. Anos mais tarde Huxley reviu a sua previsão, sendo que em vez de 700 anos, a sociedade que descreveu provavelmente se formaria em 200 anos. A tendência de hoje nos vários campos do saber parece apontar para o mesmo caminho, e agora, quase 100 anos depois, mais do que nunca devemos refletir sobre o tipo de sociedade que queremos e se é uma distopia inumana que pretendemos criar. Foi com estas ideias que analisei o texto do Marco, que na sua perspetiva de gestor, mostra que a sociedade avança a passos largos para uma nova era distópica. Não resisto também a citar Victor Hugo, que já no século XIX dizia (isto agora a propósito do caminho que vamos percorrer até chegar a este tipo de sociedade) que, passo a citar “algumas pessoas são más unicamente pela necessidade que sentem em falar. A sua conversa, cavaqueira de salão e tagarelice de antecâmara, é como aquelas chaminés que queimam a lenha muito depressa; precisam de muito combustível, e esse combustível é o próximo”. É mesmo isto que queremos? Sem mais demoras, um novo artigo do Marco.

 

As avaliações de desempenho com base em KPI’s (indicadores chave de desempenho) são o modelo ideal para aumentar a conformidade e o controlo, promovem a seleção dos melhores, e somente os melhores desempenhos individuais. O objetivo é reter somente as melhores pessoas, porque muitos gestores de muitas organizações, continuam a comportar-se como autênticos sociopatas, e por consequência, querem ter as melhores pessoas, e somente as melhores pessoas. O resultado são ambientes de trabalho tóxicos e completamente disfuncionais, onde o ego é maior que a soma das partes. Mas na prática, o que que significa ser melhor, ou ter as melhores pessoas?  A palavra-chave é Stress.

Todos os modelos de avaliação de desempenho que utilizam KPI’S para alavancar resultados com base em pessoas, têm como consequência o aumento dos níveis de stress para valores incomportáveis, até atingirem aquilo a que eles chamam de ponto de pânico. É através de técnicas de manipulação, bullying, persuasão e assédio moral, que muitas empresas, instituições e organizações conseguem aumentar os níveis de stress com o intuito de alavancar resultados com base em pessoas. O seu único objetivo é atingir resultados, como eles dizem, números, para alimentarem o seu próprio ego, conforto, ambição de poder, dinheiro e posição. Mas porquê aumentar o stress? Porque quem segue esta tese continua a pensar de forma determinista, algorítmica e autocrática, e acredita que aumentando os níveis de stress, aumentam o desempenho. E esta é uma das maiores falácias do mundo empresarial.

As pessoas que utilizam os modelos de avaliação de desempenho acreditam que se aumentarem os níveis de stress nas pessoas, estas entregam mais trabalho, e isso é absolutamente falso, acreditam que o stress vai alavancar resultados, e acreditam que ele pode vir de várias formas, pode vir através de técnicas operacionais, através de metas e objetivos, pode vir através de ferramentas, programas, aplicações, formação, códigos de conduta, rodízio de funções, e acreditam que esse stress vai aumentar certamente o desempenho individual.

O que pretendem é aumentar ainda mais o ritmo de trabalho mental, que neste momento já é elevadíssimo, para que as pessoas possam desempenhar mais tarefas em menos tempo. Mas como é que se consegue isso? Bem, através de técnicas de manipulação, com a ajuda de programas informáticas, onde o objetivo é isolares cada pessoa: isso faz com que ela se sinta menos do que aquilo que na realidade é, e desta forma mais facilmente manipulável. As técnicas de o fazer são variadas, dependendo de caso para caso, mas o objetivo aqui é que a pessoa entregue mais trabalho. Contudo, os danos causados na psique humana por estas técnicas são muitas vezes irreversíveis. As pessoas  que não permitem estes abusos são um alvo a abater, e fazem com que sejam elas a pedir para mudar de funções, ou melhor, mantêm a pessoa na mesma função até ela quebrar completamente, e ser ela a pedir para sair da instituição, sabem que ela sem autonomia, sem competência, e sem  sentimento de pertença, vai entrar num estado de exaustão mental, burnout e pânico, e vai pedir para sair, na maioria dos casos as famílias nunca se apercebem dos verdadeiros motivos e culpam as próprias vítimas, deixando os verdadeiros culpados livres para continuarem a cometer tais abusos. Então o segredo é, reter as melhores pessoas e somente as melhores, preferencialmente jovens, submissos. subservientes, baratos, com ausência de emoções e sentimentos, motivadas pelo medo, motivados extrinsecamente, ambiciosos, enérgicos e competitivos. O objetivo é aumentares o desempenho através da deslocação do ponto de pânico no tempo, de forma que vá aumentando, até chegares a um ponto em que a pessoa já não consegue entregar mais. As pessoas mais antigas podem até já ter desenvolvido alguma doença cancerígena devido ao stress acumulado ao longo dos anos, nessa altura não as podes substituir, tens de as manter na instituição. As pessoas que implementam este modelo podem estar conscientes disto ou não, mas sabem que é um processo duro, duro com as pessoas, onde tens de falar com as pessoas que têm 10, 15, 20, 30 anos de trabalho, e dizer, e agora? Têm de dar oportunidades a essas pessoas, porque os outros têm de entender que essas pessoas tiveram chances, não é só uma decisão de cortar e despedir, é uma decisão que demora, e requer planeamento estratégico, o planeamento estratégico é fundamental, é difícil contratar pessoas com o perfil certo, é uma decisão dura, mas é necessária para reduzir os custos com o pessoal, porque, por cada pessoa que sai, entra uma para o seu lugar, a ganhar menos, e com mais capacidade de aguentar o stress, este é o  modelo que promove a competição pouco saudável ao invés da meritocracia. Esta é a mentalidade, esta é a forma de pensar que nas últimas décadas, tem ajudado a destruir o valor das instituições, e vão existir sempre pessoas a defender este modelo, afinal ele tem  contribuído para a ascensão rápida na carreira de quem se conforma com este modelo e que com ele vão fazer de tudo para defender a sua posição. A forma como eles medem o sucesso é, dinheiro, posição e poder, o que ganham em termos financeiros compensa todas estas atrocidades, aliás, eles são pagos precisamente para cometer estes crimes contra a humanidade, e este tipo de comportamento sociopata, tanto pode ser perpetuado por homens como por mulheres. A experiência desenvolvida pelo psicólogo Stanley Milgram retrata bem até onde as pessoas estão dispostas a ir quando são obrigadas a obedecer a instruções, o que ficámos a saber desta experiência é que a crueldade do ser humano não tem limites, o problema da sociedade tanto pode ser a desobediência civil, como a obediência civil, ambos matam milhões de pessoas todos os anos. A Santa Inquisição promovia a conformidade e a obediência na sociedade, a maioria das pessoas conformavam-se com os autos de fé, era um espetáculo público em que as pessoas contemplavam seres humanos queimados na fogueira, mas hoje sabemos que não é correto pegar fogo às pessoas. Infelizmente, a nossa história está repleta de casos destes. O que dirão as gerações futuras das nossas ações, o que dirão os nossos filhos e os nossos netos ao saberem que nós promovemos um modelo, que permitia o bulliying, que manipulávamos moralmente seres humanos, que os obrigávamos a cumprir instruções contra a sua própria vontade, ou que os ignorávamos, deixando-os completamente destruídos emocionalmente, ao ponto de cometerem o suicídio? É uma boa pergunta. Mas seja o que for que eles pensem, já ninguém pode restituir a vida aos milhões de vítimas deste modelo que continuam a aumentar todos os dias.

O Dr. William Edwards Deming, uma das personalidades mais influentes na ascensão do Japão ao segundo lugar no ranking das maiores economias do mundo, só superado pelos Estados Unidos e mais recentemente pela China, definiu o sistema de rating de pessoas assalariadas da seguinte forma:

“O sistema de mérito, avaliação anual de desempenho, também conhecido como gestão por objetivos, onde o objetivo é pagar pelo mérito, pagar por aquilo que obténs, recompensar o desempenho, soa maravilhosamente, mas não pode ser feito, infelizmente não pode ser feito no curto prazo, ao fim de 10 anos, talvez, ao fim de 20 anos certamente. O efeito é devastador, as pessoas têm de ter sempre alguma coisa para mostrar, algo para contar, por outras palavras, o sistema de mérito nutre o desempenho de curto prazo, e aniquila o planeamento de longo prazo, aniquila o trabalho de equipa, as pessoas não podem trabalhar juntas, para seres promovido tu tens de estar á frente dos outros, ao trabalhares em equipa tu ajudas as outras pessoas, e podes ajudar-te igualmente a ti próprio, mas dessa forma não chegas á frente, para chegares á frente tens de produzir mais, ter mais para mostrar, mais para contar, e trabalho de equipa significa trabalharem em espírito de colaboração, ouvir as ideias de todos, preencher as fraquezas das outras, saber reconhecer as suas forças, criar interligações, isto é impossível debaixo da avaliação de mérito ou da avaliação de desempenho individual, as pessoas têm medo, elas trabalham com medo e não podem contribuir para a empresa como desejariam. Isto acontece em todos os níveis, existe alguma coisa pior que isso. Quando as avaliações anuais são entregues, as pessoas ficam  amargas, elas não conseguem entender porque é que não foram melhor avaliadas, e existe uma boa razão para elas não entenderem, porque eu posso mostrar-vos com um pouco mais de tempo que isso é puramente uma lotaria, se fosse reconhecido como uma lotaria e se fosse chamado assim, então algumas pessoas iriam ter sorte e outras azar, ao menos entendiam o sistema, e algumas não se sentiam inferiores e outras não se sentiam superiores.”

Resumidamente significa que:

1)     É um sistema arbitrário e injusto.

2)     Desmoralizador para os empregados,

3)     Nutre o desempenho de curto prazo,

4)     aniquila o trabalho de equipa e encoraja o medo.

Estas palavras foram proferidas pelo Dr. William Edward Deming, um estatístico, uma pessoa habituada a trabalhar com números, com variações, e modelos matemáticos, portanto, a matemática não é boa ou má, nós é que podemos fazer como que ela seja boa ou má. O prémio Deming, é um dos prémios mais prestigiado do mundo, que uma empresa pode obter em gestão de qualidade, e foi criado em homenagem a este grande homem. A avaliação de desempenho anual encoraja a mobilidade da gestão, é um modelo que está obsoleto e ultrapassado, quem não consegue obter um aumento, ou seja, o equivalente a um bom desempenho, vai procurar outro emprego, e isso é mau para a empresa, todos perdem. O gestor tem de criar raízes na empresa, tem de saber como funcionam os vários departamentos da empresa e quais as interligações entre eles, tem de conhecer as pessoas, tem de conseguir desenvolver as pessoas no longo prazo, tem de as saber ouvir, tem de saber cuidar, saber o que as motiva, e quais as interligações entre elas, tem de ter uma visão global, profunda e holística dos problemas, uma visão sistémica, e isso leva tempo, leva muitos anos a conseguir. O sistema de avaliação de desempenho apenas recompensa as pessoas que se conformam com o sistema, não recompensa tentativas de melhorar o sistema.


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