domingo, 27 de novembro de 2022

One Piece Filme Red (2022) - Crítica

 


Em 2019 durante o curso de francês, um amigo insistiu muito comigo para ler/ver One Piece. Na altura não senti grande incentivo, até porque era (e é) uma história muito longa e iria consumir bastante tempo. Ele continuou sempre a insistir que era um investimento que valia a pena, até que em 2020, com o primeiro confinamento e dado que dispunha de imenso tempo livre, resolvi entrar neste mundo e aceitar este desafio. Desde então, nunca me arrependi, e sigo agora a série semanalmente.

Eichiro Oda, o criador da série, é uma das pessoas mais criativas do mundo da cultura e da arte, conseguindo criar um mundo próprio, mas com imensas parecenças à realidade, misturando uns toques de magia ou, se se preferir, de características próprias daquele universo.

A série segue as aventuras de Monkey D. Luffy e a sua tripulação, os piratas do Chapéu de Palha, que têm o sonho em descobrir o misterioso tesouro (o One Piece) deixado pelo “rei dos piradas” Gol D Roger.

A série existe desde 1997, e por isso foi muito interessante ver na sala de cinema pessoas entre os 8 e os 40 anos, mostrando que One Piece é uma série que tem a virtude (que muito poucas séries têm) de transmitir uma mensagem para todas as idades, e que aqueles que começaram a seguir os capítulos de manga semanalmente em 1997, ainda hoje seguem a história com o mesmo entusiasmo.

Existem vários filmes de One Piece que, não sendo parte da história principal, são uma ótima oportunidade de rever muitos das centenas de personagens que já passaram num momento ou outro pela história, e de dar mais uns toques de desenvolvimento a este fantástico universo. O filme Red, foi o mais recente nesse sentido.

No mundo de One Piece, tal como no mundo real, existem várias fações, cada qual com as suas características. O Governo Mundial, que à partida tenciona manter a ordem e a lei no mundo, sendo que muitas vezes funciona de forma absolutamente totalitária, permitindo imensas injustiças da classe dominante (os nobres mundiais/dragões celestiais, que têm imunidade total à lei) e cometendo atos e crimes absolutamente macabros como genocídios e escravatura; já os piratas, uns procuram seguir os seus sonhos e descobrir o One Piece, um tesouro que o Governo Mundial tenta a todo o custo que continue escondido, mas que em larga medida outros atuam como verdadeiros piratas, saqueando, matando, queimando imensos dos territórios por onde pausam, deixando por detrás um rasto de morte e destruição.



Nesta realidade, surge Uta, a personagem principal do filme. Filha de Shanks, o mentor e ídolo de Luffy, o personagem principal, é uma cantora brilhante e popular, que tem o poder de com a sua música levar quem a ouve para um universo paralelo onde ela dispõe de poder absoluto e quer criar uma realidade em que este mundo de conflitos e sofrimento não existem, sendo a sua música um fator de união. Afinal, quem não procura na música um refúgio para a vida real ou um incentivo/ companhia para o dia a dia? Durante o trabalho, a estudar, nas viagens de carro, a fazer as tarefas domésticas, ou simplesmente ao fim do dia a relaxar, a música é uma companhia maravilhosa e que nos preenche. Na aparência a ideia e o plano de Uta seria maravilhoso, mas aqui surge o verdadeiro revés da moeda: Uta quer manter para sempre reféns no mundo dela todos aqueles que ouvem a sua música, não permitindo que regressem ao mundo real. Perante esta ameaça, e sendo que o concerto está a ser transmitido pelo mundo real para milhões de pessoas, o Governo Mundial envia para o local do concerto um enorme armada da Marinha, com ordens de eliminar Uta e todas as pessoas que adormeceram presas ao seu mundo, mesmo que para tal se tenha de exterminar civis inocentes.

One Piece, tem muito a questão do que é a justiça, e eu, como jurista penso muito nas conclusões de Oda: será a justiça somente o cumprimento da lei e ordem, por mais injusta que ela seja? Será a justiça verdadeira não o que está escrito na lei mais aquilo que nos dita a consciência, seja ela o que for? O que é verdadeiramente aquela soma de virtudes para as quais chamamos justiça? Não há uma resposta una e inequívoca a estas questões.

Como tudo na vida, o sonho deve comandar. Apesar da música existir para nos acompanhar e ajudar no dia a dia, não podemos viver só dela. Devemos enfrentar o mundo tal como ele é, nas suas virtudes e defeitos e procurar com o nosso caminho pensar e refletir nestas importantes questões que o mundo de One Piece bem nos coloca e são transponíveis para a nossa realidade.

Em jeito de crítica mais negativa, o One Piece Filme Red talvez não seja o melhor filme para introdução à série dado que aparecem imensas personagens que só com a história principal temos oportunidade de construir empatia com eles, nomeadamente a tripulação de Luffy. Mas assisti ao filme com um sorriso na cara e gostei não só das músicas maravilhosas (deixo uma dela aqui), como me deu uma nova oportunidade de regressar a este mundo e levar conclusões que me tem impacto como sou, uma pessoa deste mundo real com preocupações, mas cheia de sonhos.

 

domingo, 13 de novembro de 2022

O artigo que nunca pensei escrever – 50 sombras (2011)

 


Desde muito novo sou um enorme adepto de futebol. Umas vezes mais atento aos jogos, outras fases só a acompanhar os resultados (#carrega Benfica, desculpem-me os leitores de outras preferências), e como qualquer jovem que cresceu e viu os momentos épicos da sua geração, há um futebolista italiano que cresci a admirar como jogador e como pessoa. O guarda-redes, tido por muito como um dos melhores de sempre e um caso excecional de uma longa carreira (atualmente a jogar no Parma), o italiano Gianluigi Buffon. Numa entrevista dada há uns anos, ainda como jogador da Juventus, mostrando o seu lado mais pessoal e íntimo da carreira, disse algo que me deixou deveras surpreendido tendo em conta que falamos de um jogador de futebol; “Todas as pessoas têm nelas um lado criativo que muitas vezes ignoram”.






“Interviews seem such artificial situations, everyone on their best behavior trying so desperately to hide behind a professional façade. Did my face fit? I shall have to wait and see.”


Assim mesmo se passa no mundo da arte: um dos meus chefes do atual emprego, complementado esta ideia de Buffon, comentou que falar que “não se gosta de ler” ou que “não se gosta de músicas, séries, filmes, pintura, escultura ou qualquer tipo de manifestação de cultura artística”, tem na génese duas razões: ou porque não foi incutido o hábito (e quem me conhece pessoalmente e vai conhecendo aqui no blog sabe que desafio as pessoas que me conhecem a arriscar neste mundo fascinante dos livros); ou então porque a pessoa não arriscou a explorar todo este mundo de possibilidades e por vezes a reação hostil a estes hábitos deriva de um certo medo de arriscar e descobrir qual o género e estilo que nos faz sentido e nos complementa. O mundo muitas vezes é complexo, e como em todos os aspetos da vida, tudo está em arriscar na descoberta daquilo que nos faz sentido.

Recentemente desafiaram-me a ler um livro que nunca esperei que o fosse fazer. Agora que o terminei (o primeiro volume), achei que seria interessante e desafiante partilhar algumas ideias sobre este livro, que é um género literário que não leio com regularidade, mas que em todo o caso e como qualquer livro, podemos retirar algumas ideias.


“the man is a walking mass of contradictions.”


As 50 sombras de Grey fez um enorme sucesso: é um livro de escrita acessível, muito fácil de se ler, com momentos pontuais de humor (sobretudo na linguagem e nas trocas de emails entre os dois personagens), e representa (mais) um marco do desenrolar da revolução sexual, iniciada sensivelmente a meio do século XX em que as pessoas aprofundam e exploram novos níveis de intimidade que até então ou eram desconhecidos ou eram tabu.

O que mais me fez refletir nesta obra foi o complexo estado da relação do Sr. Grey com Ana: na aparência um milionário intelectual, empreendedor, atraente, e com uma visão global do mundo, de mão dada com uma linda jovem recém-licenciada e com sonhos parece ser tudo aquilo que as pessoas querem numa relação. Mas como tudo na vida, as aparências iludem e as coisas nunca são simples. Por detrás daquele rico garanhão extrovertido e com uma carreira de sucesso, esconde-se uma pessoa profundamente traumatizada, assustada e com as suas cicatrizes (as 50 sombras); e por detrás daquela linda mulher culta e elegante, esconde-se uma pessoa profundamente confusa, insegura e que só recentemente saiu da sua zona de conforto, explorando sentimentos que só muito recentemente (e tardiamente tendo em conta os tempos atuais) sentiu.


“Follow your heart, darling, and please, please – try not to over-think things. Relax and enjoy yourself. You are so young, sweetheart. You have so much of life experience yet, just let it happen. You deserve the best of everything.”


O livro faz refletir sobre temas mais de natureza social do que histórico-político, como o fazem os livros que costumo ler. A nossa sociedade cada vez mais é difícil de conseguir encontrar uma relação, seja que natureza for, mas sobretudo as amorosas) onde é difícil ser-se genuíno, onde expor medos e debilidades é conotado como fraqueza e insegurança. A autora consegue, do seu jeito mostrar isso mesmo: que a imagem e aparência de uma pessoa não corresponde forçosamente à sua essência, a imagem de perfeição na nossa sociedade não tem forçosamente de corresponder ao triunfo final de felicidade e que as relações humanas devem ser feitas, como disse um dia Buffon em não ter medo de nos expormos naquilo que realmente somos, e que nós pessoas não somos ilhas. Parte de uma relação saudável deve ser feita numa exposição e partilha recíproca de vida, entre momentos de glória e declino, sendo que por vezes, os protagonistas da história (sobretudo o Sr. Grey) devem procurar e acreditar que é possível construir-se uma relação onde se é genuíno e livre.


“And because of his fifty shades – I am holding myself back. The BDSM is a distraction from the real issue. The sex is amazing, he’s wealthy, he’s beautiful, but this is all meaningless without his love, and the real heart-fail is that I don’t Know if he’s capable of love. He doesn’t even love himself. I recall his self-loathing, her love being the only form he found – acceptable. Punished – whipped, beaten, whatever their relation entailed – he feels undeserving of love. Why does he feel like that? How can he fell like that? His words haunt me: ‘It’s very hard to grow up in a perfect family when you’re not perfect.’”


Não posso afirmar que este seja o meu género literário de eleição. Nunca escondi para os meus leitores o meu gosto pela política e história, tendo procurado nos momentos de final de dia aproveitado as reflexões onde parto destes dois elementos para meditar sobre o estado geral da sociedade. Mas comecei o texto, no mundo da arte, onde incluo as plataformas digitais, existe conteúdo para todos: Tal como Ana e o Sr. Grey e tal como em mundo aspetos da nossa vida, tudo está na verdade em arriscar.


Aproveitando que estou a falar de coisas menos habituais no meu blog, quero aproveitar para deixar o link de uma crítica a um anime que gostei bastante, que achei inspiradora e que reflete algumas das ideias que retirei deste primeiro volume das 50 sombras. 


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Moby Dick (1851) de Herman Melville – Crítica


 

“Uma boa gargalhada é, porém, uma coisa tão apetecida e quase tão rara como um gesto piedoso.”

 

Moby Dick é um romance histórico já amplamente divulgado e adaptado ao cinema, teatro e até mesmo desenho animado. Por desafio (que mais uma vez, só este ano aceitei) de um professor de mestrado, resolvi dar uma chance a este romance histórico e venho aqui de novo ao blog partilhar as minhas conclusões.

A premissa da história é bastante simples. Um barco baleeiro comandado pelo Capitão Ahab que tem como última ambição matar a misteriosa e mítica baleia branca, que representa um elemento de uma certa divindade. Muitas vezes o tom do romance e das narrações de Ismael (o personagem principal) é sombrio, e alterna com certos momentos de euforia. Na verdade, tal é muitíssimo bem retratado por Herman Melville. A vingança é uma das emoções mais primárias e sombrias do ser humano, que muitas vezes nos conduz a atos irrefletidos e de moralidade duvidosa.

“…nenhum homem pode sentir plenamente a sua própria realidade, excepto de olhos fechados; como se as trevas fossem efetivamente o elemento próprio das nossas essências, sendo a luz mais congénita com a nossa natureza material.”

Fruto também da época e local em que o romance foi escrito, podemos encontrar outros elementos interessantes. A característica mais desafiante da leitura desde livro é certamente a descrição da indústria da caça à baleia, que em tempos foi um importante setor da economia internacional. Por vezes a descrição e as reflexões são exaustivas, mas como qualquer romance histórico, é fascinante de ler e presenciar com a nossa imaginação uma realidade de uma vida dura, solitária e nem sempre recompensadora que não há muitos anos muitos dos nossos antepassados enfrentaram.

Moby Dick representa também o elemento de divindade e tentativa de superação humana do divino, o que é também o marco da literatura do século XIX de uma alternância de um pensamento e mentalidade teocentrado para centrar no homem. O que achei interessante quanto ao final, e aqui adicionando um certo elemento de localização no espaço do livro, acredito que o final seria diferente se fosse escrito por um escritor europeu da época. Melville não ignora as suas raízes americanas, cujo país foi fundado por uma base populacional altamente conversadora, tendo com isso influenciado o desfecho, arrisco-me a dizer.

“Todos os homens vivem rodeados de linhas de baleias. Todos nascem com cordas em volta do pescoço; é apenas quando se encontram perante uma morte súbita e rápida que os mortais percebem os perigos silenciosos, subtis e sempre presentes da vida. E se vós sois filósofos, embora sentados numa baleeira, não sentireis no vosso coração mais terror do que se vos encontrásseis sentados diante do fogo da lareira, com um atiçador e não com um arpão ao alcance da mão.”.

Apesar do desfecho, o livro marca também uma posição e estado de espírito da humanidade em relação à natureza, numa época em que o homem tentava superar de todas as maneiras o natural. Atualmente, em larga medida e sobretudo a partir dos anos 70 do século XX, a postura da Humanidade de certa forma alterou-se de uma fase de superação para conversação do meio ambiente, e penso ser esse o motivo pelo qual o livro me foi recomendado em aula.

Moby Dick está claramente entre os meus livros preferidos e é uma obra que me imagino a reler dentro de uns anos. Recomendo vivamente.

 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Como poeira ao vento” (2021) e “O homem que gostava de cães” (2013) – Leonardo Padura (crítica)

 



 

 

O que existe de fascinante em relação à arte é o fator que para além da sua natureza lúdica (o que é, aliás, a sua principal razão de ser), é ser, do mesmo modo, um poderoso instrumento/documento histórico: direta ou indiretamente reflete o estado de espírito do autor que, invariavelmente, nunca se separa integralmente do contexto em que viveu/vive e as grandes questões colocadas na sua época. Esse é o fator que mais me atrai ao romance histórico e aos clássicos da literatura: para além de um enredo mais ou menos fascinante (neste campo, no mundo da literatura, há conteúdo para todos os gostos), descreve muitos mais fatores. Como se costuma dizer, não podemos construir um futuro sem ter conhecimento sólido sobre o passado. Essa é, quiçá, a grande razão de ser da História.

Hoje o que me traz de novo ao blog é um escritor da atualidade, o cubano Leonardo Padura, crítico, mas não dissidente do seu país. Por sugestão de um comentador televisivo que publicitou os seus livros, resolvi dar uma chance, dado que até então conhecia pouco da literatura sul americana, tendo tido só um esporádico contacto com Jorge Amado e Gabriel Garcia Marquez.

Padura, no seu recente romance “Como poeira ao vento”, cujo título é inspirado nesta música, acompanha a evolução de um grupo de amigos cubanos que assistem aos anos finais da guerra fria e os desenvolvimentos históricos que aconteceram no país e levaram a uma separação do grupo. Uns ficaram em Cuba, outros foram para a Europa, outros arriscaram a travessia para os EUA, mas em comum com todos eles foi que na verdade o peso das nossas raízes é forte e apesar de cada qual viver em contextos político económicos diferentes, na verdade aquelas grandes questões da humanidade atual estão refletidas para todos, o que me leva a pensar que talvez não exista assim tanta diferença entre povos.

“-Aconteceu-nos tudo – continuou Bernardo, recusando-se a baixar o tom de voz - , e sem nos pedir licença. Os sonhos agora são insónias ou pesadelos. Aconteceu-nos termos perdido. Este é o destino de uma geração – sentenciou, recuperou o copo com uma mão já trémula e, de um gole, acabou a bebida. – E assim estamos companheiros, irmãos de luta: de derrota em derrota … Até à vitória final!”. Como poeira ao vento (2021)

Em “O homem que gostava de cães”, um romance ficcional sobre Ramon Mercader e Trótski, Padura faz uma enorme análise sobre a evolução dos vários momentos do século XX, passando pela tomada de poder de Estaline da URSS, a caótica guerra civil espanhola, o exílio e assassinato de Trótski, a segunda guerra mundial e os anos 60, 70 e 80 (o início do fim da guerra fria). Padura transmite a evolução do estado de espírito da humanidade, desde uma enorme euforia até uma fase de desencanto e descontentamento. Por isso os romances acabam por se complementar um e outro: “Como poeira ao vento” acompanha a sociedade do século XXI no rescaldo que foi o intenso século XX e uma certa falência/descrédito das ideologias e triunfos finais da humanidade, para uma humanidade que hoje está a acusar a ressaca de toda a nossa história recente e procura um novo rumo.

“A tão aguardada mudança de século e milénio passou e o mundo, transformado num sítio cada vez mais hostil, com mais guerras e bombas e fundamentalismos de todas as espécies (como era de esperar, depois de atravessar o século XX), acabou por ser tornar para mim num espaço alheio, repelente, com que fui cortando amarras, enquanto me deixava levar à deriva pelo ceticismo, a tristeza e a certeza de que a solidão e o desamparo mais absoluto espreitavam ao virar da esquina.” O homem que gostava de cães (2013). 

Padura consegue também, numa escrita acessível, mostrar traços das características atuais dos romances, mantendo sempre toda esta mensagem: uma escrita cativante, com suspense, crime, traços de sensualidade e emoções fortes que prendem o leitor do início ao fim.

Acredito piamente que Leonardo Padura é dos melhores escritores da atualidade e tenho fé que futuramente ganhará um prémio Nobel. Mas independentemente disso vejo nele potencial para que os seus romances venham a ser lidos daqui a 50 e 60 anos e conseguiram fornecer às próximas gerações informação preciosa de aquilo que está a ser a nossa vivência e os nossos gostos literários. Espero que a História faça essa justiça.