segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Conflito no Delta do Níger (Nigéria)



Para além da República Democrática do Congo, um outro país africano que tem enorme relevância para o comércio/economia internacional e que também gosto de pesquisar, é a Nigéria: o país é o mais populoso de África, com cerca de 199 milhões de pessoas (7º no mundo), e, de entre os países africanos é o maior exportador de petróleo, o possuidor de maiores reservas desta matéria prima, e é, desde 2014 (devido à recessão da África do Sul), a maior economia do continente.

A Nigéria é o maior exportador de petróleo de Africa. Só no Delta do Níger encontra-se 5% das reservas mundiais. Infelizmente a maioria dos nigerianos vive na pobreza.


Não obstante, não podemos dizer que a Nigéria é um país pacífico e prospero. Recentemente, a Nigéria tem aparecido nas notícias por todo o mundo devido aos ataques do grupo islâmico Boko Haram (leal ao Estado Islâmico), a ao seu conflito religioso. Entre linhas acrescento que existem um enorme equilíbrio religioso no país: aproximadamente 55% dos nigerianos são muçulmanos, sobretudo no norte do país, e cerca de 45% são cristãos, sobretudo no sul. Talvez fale sobre o Boko Harem num artigo futuro, mas agora vamos ao sul da Nigéria e ao delta do rio Níger.


A foz do rio Níger forma um enorme Delta, que dá o nome à região. Outrora um dos mais importantes ecossistemas em África, hoje o rio está extremamente poluído.

Contexto histórico e militarização no Delta

Mapa da região do delta.
O território da atual Nigéria foi concedido ao Reino Unido na Conferência de Berlim. Na região do delta do Níger a principal atividade (pela sua localização geo-estratégica no golfo da Guiné) era o comércio do óleo de palma, e era em torno disso que boa parte da população vivia. A Nigéria como hoje a conhecemos surgiu por decisão administrativa de Londres em 1914, tendo sido então subdividida em três estados. Imediatamente surgiram conflitos étnicos, pois nenhuma das etnias maioritárias da nova colónia vivam no delta, e a ideia de prestar contas a grupos exteriores não foi do agrado da população. Não obstante, os britânicos contiveram a revolta com sucesso.

Em 1954, os britânicos alteraram o estatuto administrativo da Nigéria para federação, tendo esta divisão institucionalizado o mau estar já existente no país, ao consagrar instituições de tipo ocidental cujos cargos eram ocupados pelos grupos étnicos maioritários, a saber os Yoruba, os Igbo (que passaram na prática a ser os “senhores do delta”) e os Hausa-Fulani. Nessa mesma década, enormes reservas de petróleo foram descobertas pela Shell e pela BP no atual estado de Bayelsa no ano de 1956, e dois anos depois, começou a exportação do produto.

A Nigéria exporta petróleo desde 1958, mas essa atividade teve grandes efeitos colaterais.

Em 1960 a Nigéria alcança a independência o por todo o país, incluindo o delta, houve diversas tentativas de independência de várias regiões (sem sucesso). Em 1966 Isaac Bora tenta proclamar uma República do Delta do Níger, mas elite Igbo consegue conter as suas ambições e este é derrotado. Contudo, em julho desse ano, Yakubu Gowon toma o poder na Nigéria e liberta Bora e seus aliados, sendo que estes se juntam ao novo presidente na guerra civil da Nigéria.

A guerra civil da Nigéria (1967-1970), também conhecida como guerra do Biafra requer uma autonomização pela sua complexidade: pouco depois de tentativa de independência de Isaac Bora, Odumegwu Ojukwu, da etnia Igbo, uma das etnias dominantes na Nigéria desde o "mapa regional" britânico, (e que até impediram o golpe de Boro), proclamou a independência do Biafra, um país que ia do delta até à fronteira com os Camarões. Vendo a sua principal fonte de receitas em risco, o presidente do governo central Gowon imediatamente declarou guerra ao Biafra. A internacionalização desta guerra foi atípica, mesmo em plena guerra fria: em vez do tradicional jogo EUA vs URSS, os protagonistas principais foram França (que apoiou do Biafra) e Reino Unido (que apoiou o governo central), e a disputa entre as suas petrolíferas (a Shell do lado do Reino Unido e a Elf do lado de França) pelos poços de petróleo. A URSS, mesmo sem grande entusiasmo, apoiou o governo central, temendo que a fragmentação dos novos africanos dificultasse as suas ambições políticas no continente e, em contrapartida, reforçasse a influência das antigas colónias europeias. Já os EUA, ainda que oficialmente neutros, não tiveram uma postura uniforme: administração Johnson apoiava secretamente o governo nigeriano, já Nixon era mais pró-Biafra, mas ao aperceber-se que a derrota deste lado era questão de tempo, mudou de lugar. Quanto a atores mais mediatos, do lado do Biafra cumpre destacar Israel, e o trio de Portugal, África do Sul e Rodésia.
Esta guerra teve enorme impacto mediato à época: a fome foi mesmo usada como arma neste conflito. Durante os 3 anos, a Nigéria impediu que alimentos e outros bens de primeira necessidade chegassem facilmente ao Biafra, com consequências humanitárias catastróficas. Nestes 3 anos, perto de 1 milhão e meio de pessoas morreram.

Isaac Bora lutou pelo lado da Nigéria: ou por prova de lealdade a Gwom, que o libertou, ou mesmo por oposição ao Igbos, que na sua ótica já muito tinham beneficiado da região. Em 1970, Bora foi assassinado, em circunstâncias desconhecidas. Ainda hoje é visto como um mártir no delta.

Em 1969, o governo central de Lagos (então a capital da Nigéria), promulga o Decreto nº 51/Petroleum Act of 1969: aproveitando as galopantes receitas da exportação de petróleo no delta, com esta lei o governo na prática fez uma “nacionalização administrativa”, pois em vez das receitas de produção e exportação reverterem para as entidades administrativas da região, estas passaram a reverter para o governo central. O efeito imediato foi claro, a partir desse momento as multinacionais petrolíferas (que entretanto tinham entrado no país) deixaram de “prestar contas” aos líderes regionais, fazendo-o apenas ao governo central.

Com esta deslocação de receitas e após o fim da guerra civil, surgiram enormes protestos na região, onde se destacaram os Ogonis, uma das minorias étnicas do delta. Estes criaram o MOSOP (movimento para a sobrevivência do povo Ogoni) que levou a cabo uma campanha pacífica de protesto contra as multinacionais e contra o governo, e tinha essencialmente dois objetivos, que os detalhou num documento chamado a Ogoni Bill of Rights: o ressarcimento dos danos causados pela produção e exportação de petróleo na sua terra, sobretudo ambientais, que punham em causa a sua subsistência, que era à base de atividades do sector primário; e uma repartição local e justa das grandes receitas de petróleo. Nos anos 90, Ken Saro Wiwa assume como líder do movimento, e centra a campanha do grupo contra a Shell e a poluição de que esta era responsável, tendo conseguido com sucesso que esta deixasse a região Ogoni em 1993. Ferido de receitas, o governo central imediatamente reagiu. Á época a Nigéria vivia sob ditadura militar do general Abacha, e imediatamente o exército nigeriano fez buscas a aldeias ogoni, prendendo membros e simpatizantes do MOSOP e, em 1994, sub alegações fraudulentas e falsas, condenou à morte Ken Saro Wiwa e outros oito dirigentes do seu movimentos. Estes foram enforcados em novembro de 1995 numa prisão em Port Harcourt (a maior cidade do Delta do Níger).
O ativista político e ambiental Ken Saro Wiwa.

A morte da Saro Wiwa foi marcante, não só devido ao protagonismo internacional que este conseguiu obter, como para a maioria da população do delta, jovem, pobre e desempregada. Estes viram que a campanha pacífica contra os problemas da sua região foi insuficiente e levava a resultados dramáticos, pelo que a oposição ao governo e ás multinacionais deixou de ser pacífica e passou a ser violenta: nesse sentido, diversas milícias militares, próximas ás elites do delta, surgiram, em destaque para  a NDPVF (Niger delta people's volunteer force) e o MEND (Movimento de emancipação do delta do Níger), que centravam as suas atividades na sabotagem e destruição das infra-estruturas petrolíferas da região, e ataques centralizados por toda a Nigéria contra o governo central. Com a presidência de Umaru Musa Yar'Adua (que veio a falecer de cancro durante a presidência),e do vice presidente que o sucedeu Goodluck Jonathan (que é natural do delta), houve um enorme programa de amnistia para os grupos armados na região, que terminou em dezembro de 2015 quando Jonathan perdeu as eleições presidenciais e saiu do poder. A partir de 2016, surgiram novas milícias na região e muitos jovens voltaram à oposição armada, pelo que hoje o Delta do Níger continua a ser uma das regiões mais poluídas e violentas do mundo. O petróleo infelizmente tornou-se uma maldição para a região e para o país.


Rebeldes do MEND a patrulhar uma facha do delta.

Corrupção no Delta

Estima-se que cerca de 10% do petróleo extraído na Nigéria é
desviado de plataformas petrolíferas ou oleodutos
para financiar gangs e milícias.
Terminado o enquadramento histórico, um paradoxo parece ter surgido: com a divisão administrativa do país e a distribuição assimétrica dos lucros do petróleo, é de estranhar que diversos grupos armados locais tenham surgido e conseguido enormes quantidades de armamento... A resposta a isso alude a outro problema estrutural da Nigéria, a corrupção. Grandes líderes regionais e políticos locais costumam ser as pessoas por detrás dos grupos armados, e grande parte do seu financiamento é feito pela revenda de petróleo furtado. Em rigor, não se trata de um furto propriamente dito. Complacentes com essa prática, é comum as petrolíferas e o governo deixarem que parte do petróleo (ou por desvio de oleodutos ou por permitir o “desaparecimento” de alguns barris de petróleo) caia nas mãos desses influentes políticos, sendo o produto da sua revenda usado para o armamento da insurgência. Paradoxalmente as petrolíferas e o governo permitem isso como forma de "aliviar" o conflito e alimentar as elites locais, que se tornam cúmplices dos acontecimentos do delta. Ainda assim, os protestos pacíficos têm perdido militantes porque a via violenta para além de conceder o desejo de aparentes resultados mais imediatos, permite ganhar a vida numa região em que as oportunidades de emprego são escassas e limitadas. Esse é um dos motivos pelos quais, mesmo perante todo o contexto histórico analisado, o conflito do delta do Níger se tem perpetuado e não ter havido grandes melhorias na situação. O documentário que cito no fim deste texto aborda esta questão.

Catástrofe Ambiental

A quantidade de peixe desceu drasticamente nos
últimos 50 ano no delta.
No Delta do Níger vivem 34 milhões de pessoas, mas mais de 70% delas não têm acesso a água potável. A pesca e a agricultura, que outrora foram atividades dominantes na região, estão seriamente comprometidas, consequência da descuidada exploração de petróleo. Em média, por ano, cerca de 240.000 barris de petróleo são derramados no rio Níger. Um numero assustador que teve como consequência imediata uma enorme taxa de mortalidade infantil, epidemias diretamente relacionadas com a qualidade da água, a destruição de habitats com imediatas implicações económicas para os locais. Países vizinhos já foram afetados pela poluição no delta.

Conclusões

De novo, no continente africano, a luta pelo lucro das matérias primas criou/agravou um novo conflito com grandes proporções económicas, políticas e ambientais. Não é certo quantas pessoas morreram, mas podemos estimar que milhões de pessoas sofreram e estão a sofrer com a violência e poluição no delta. Infelizmente a ansia pelo lucro imediato, ignorando a sustentabilidade, originou um outro conflito de difícil resolução...

Não sei se será possível reverter a poluição do rio e recuperar o que se perdeu a nível ambiental, mas não creio que a situação se vá alterar muito. De novo, o acesso ás matérias primas tornou-se num problema em vez de ser a solução para melhorar a vida à maioria dos nigerianos. Resta esperar para ver os desenvolvimentos futuros sobre a situação no delta do Níger.

Para quem quiser e estiver curioso sobre este conflito, deixo ainda uma última referência, que é um excelente documentário da Journeyman Pictures de 2005 chamado Nigeria's Escalating Oil Wars.


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