sábado, 12 de janeiro de 2019

Surpresa eleitoral na República Democrática do Congo – breve comentário à vitória de Félix Tshisekedi.


O tão esperado ato eleitoral não foi fácil. Inicialmente marcado para o passado dia 23 de dezembro, este teve de ser adiado, por virtude de um incêndio causado em Kinshasa na sede do CENI (a comissão eleitoral), onde muito do equipamento (nomeadamente as maquinas de votação electrónica) ficou danificado. Não obstante, o país foi a votos no dia 30 de dezembro e os resultados foram divulgados esta semana.
 
Foto tirada por Baz Ratner da Reuters a uma contagem de votos em Kinshasa
Esperava-se uma corrida a três: entre o candidato com patrocínio presidencial Ramazani Shadary, o líder do maior partido da oposição Félix Tshisekedi, e Martin Fayulu, que representava uma ampla coligação na oposição. Escrevi e previa (e creio que não era o único) que Shadary iria vencer com naturalidade as eleições e que esse ato eleitoral não seria de todo uma manifestação digna de uma transição democrática pacífica de poder.

Se efetivamente o ato eleitoral não foi exemplar, fui apanhado de surpresa com o anuncio da vitória de Tshisekedi. Mas vamos por partes: como aconteceu na passagem de ano de 2017 para 2018, também este ano houve um corte à internet por todo o país numa tentativa de “acalmar e normalizar” o país. Numa era como a de hoje, dificultar o acesso à informação num país já por si com vias de comunicação muito pobres, acaba sempre por manchar a “hipotética boa vontade” do governo do país organizador das eleições.

Já quanto à escolha das máquinas de votação electrónicas, esta merece um reparo por ter causado surpresa, dado que é um meio manifestamente desaconselhado, uma vez que os ataques informáticos são muitíssimo frequentes às instituições públicas de todos os países do mundo, sendo que em abstrato a votação electrónica cria ainda mais riscos à organização de eleições por si só arriscadas. E a isto acrescento o argumento mais óbvio, na República Democrática do Congo, os serviços e infra estruturas são muito escassos, inexistentes até em muitas zonas, e isso inclui o funcionamento da rede digital e abastecimento de energia elétrica: assim sendo, como pode ser sensata a escolha deste meio de votação?

Uma das máquinas de votação usadas para a eleição.

Não obstante estas limitações, a votação decorreu na mesma.

Um outro problema desta votação foi a atividade militar no leste do país e o recente surto de ébola, que foi argumento para algumas regiões do país terem ficado excluídas da votação, nomeadamente Beni, uma região que recentemente apareceu nas noticias pelos piores motivos. Mas por estranho que pareça, a votação decorreu no Kasai que tem tido graves problemas de segurança... Parece haver algo ilógico aqui. Seja como for, ao todo cerca de 3 milhões de pessoas não puderam votar, tendo sido anunciado que estas terão a oportunidade de o fazer em março (resta saber se isso vai mesmo acontecer ou se vai ter algum resultado prático).

Quanto ao ébola, o governo manifestamente não tem meios para combater a doença, mas pessoalmente acho este surto tem cobertura desproporcional: a malária, a febre amarela, a cólera são doenças muito mais presentes no país e arrisco a dizer-me que já mataram muitos mais milhões de pessoas que o ébola. Mas não obstante, acrescentar um problema de saúde pública num país já em si rico em problemas, não é animador.
 
Foto da agência Reuters em Beni, novembro de 2018, nos preparativos de um funeral de um doente infetado pelo ébola.

Finalmente, sobre o vencedor, Félix Tshisekedi: até ao início desta “crise eleitoral” não era uma figura muito conhecida nem forte no tecido político do país. Mesmo no seu partido houve muitas reservas sobre ele. Félix é filho de Etienne Tshisekedi, um histórico político do país, chegou mesmo a ser primeiro ministro na altura que o regime de Mobutu tentou liberalizar o então Zaire. Apesar da sua participação política ter tido resultados práticos inexistentes, Etienne, pelos seus anos de oposição, primeiro a Mobutu e depois aos dois Kabilas, era uma figura de destaque da oposição. Aliás, ele mesmo participou nas primeiras manifestações contra o adiamento da saída do poder de Joseph Kabila, mas faleceu no ano passado aos 83 anos em Bruxelas, e Félix sobe então para um lugar de destaque no maior partido da oposição, o UDPS, que é muito marcado pela figura do pai. A maior parte dos analistas achava que este não tinha reais chances de vitória, pois tinha uma influência e popularidade muito reduzida no país. 

Félix Tshisekedi, o vencedor das eleições e, ao que tudo indica, vai ser o próximo presidente da República Democrática do Congo.

A oposição, fora da UDPS, concentrou em grande medida o seu apoio a Martin Fayulu, empresário e antigo funcionário da petrolífera italiana Exon, para concorrer. E por ironia, este é o candidato que está empenhado a impugnar o ato eleitoral. Fayulu "aproveitou" do apoio de muitos dos apoiantes de Moise Katumbi e Jean Pierre Bemba, que viram as suas candidaturas recusadas por argumentos que são questionáveis (nomeadamente várias acusações "non liquet" de corrupção), pelo que muito da oposição, pouco crente e divergente da UDPS, apoiou Fayulu, incluido a Igreja Católica no Congo.

O grande derrotado foi Ramazani Shadary, o candidato oficial do presidente, que ficou em terceiro lugar nas votações.

Sobre o que acho que pode ter acontecido (lembrando que no Congo, convém sempre lembrar, nada é o que parece): Ramazani Shadary era ministro do interior de um país em que parte muito significativa do território está em estado de guerra, sobre ele (não só mas também) têm caído graves acusações de violações dos direitos humanos, por crimes de guerra no Kasai, cuja situação já abordei, como no caso dos massacres de Beni. Aliás, o antigo ministro está mesmo com os bens congelados e impedido de entrar na União Europeia. Seria sempre problemático uma pessoa com este registo chegar à presidência da República.
Kabila não tinha nenhuma opção que lhe permitisse ficar no poder, e portanto pode ter-se aliado com um membro relevante da oposição, e aqui surge Félix Tshisekedi, o vencedor das eleições. A ser verdade, pode ter sido uma ótima jogada de Kabila, pois pode dizer à comunidade internacional que o seu candidato perdeu mas aceita os resultados e entrega o poder ao candidato vencedor do maior partido da oposição, e como contra partida pode ter garantido a sua vida (pode parecer sensacionalista de se escrever, mas convém sempre lembrar que desde a independência do Congo, normalmente os chefes de Estado saem do poder ou mortos ou no exílio) e talvez consiga arranjar forma de continuar a ter a sua "mão" no poder. E nestes primeiros dias de Félix Tshisekedi, Kabila tem estado muito próximos, o que deixa antever que o presidente cessante vai continuar com uma vida política ativa, sendo que são do seu partido a maioria dos deputados da Assembleia Nacional (o equivalente à Assembleia da República em Portugal). 

O ainda presidente Joseph Kabila, acompanhado pelo seu filho, vota em Kinshasa. A tomada de posse do novo presidente está prevista para dia 18 de janeiro.

Na oposição a estes resultados entra a Igreja Católica e Martin Fayulu: a igreja tem uma enorme influencia no país, tendo tido até membros observadores nestas eleições (e acrescente-se, ao contrário de 2006 e 2011, não foram aceites observadores nem dos EUA nem da UE no ato eleitoral), e já provou várias vezes que tem grande capacidade de mobilização. Na véspera da anunciação dos resultados, a sondagem dos católicos dava a vitória a Fayulu, pelo que este acusa o vencedor de "golpe de estado eleitoral". De novo já houve manifestações e violência por todo o país. Mas entretanto o Tribunal Constitucional confirmou os resultados que dão a vitória ao candidato da UDP e o novo presidente tomou posse no passado dia 24.



Quanto aos dados, deixo aqui um indicador:
1º lugar Felix Tshisekedi 38.57%
2º lugar Martin Fayulu 34.83%
3º lugar Ramazani Shadary 23.84%
(Não foram revelados, por enquanto, as percentagens de votos dos outros candidatos)


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