Começo este ano
de 2024 com um tema que os leitores do blog mais antigos certamente se
recordam, mas que há algum tempo não vinha ao blog: o Congo. Num ano que vai
ser marcado por diversos atos eleitorais por todo o mundo, achei que não fosse
má ideia começar o ano por analisar brevemente as eleições de dezembro na
República Democrática no Congo.
Como nota preliminar,
importa notar que o sistema eleitoral do Congo é bastante peculiar: o presidente
é o vencedor da eleição por maioria qualificada e com base na Assembleia Nacional
e as várias Assembleias/Órgãos de Poder Local forma o seu governo. Por isso
temos logo aqui uma característica: as eleições no Congo misturam, transpondo para
a realidade portuguesa, as eleições presidenciais, legislativas e autárquicas,
portanto muito está em jogo.
Como outra nota preliminar,
mais como natureza de lembrete, o Congo tem um terrível histórico em transições
de poder. A eleição de 2018, com toda a instabilidade, confrontos e tensões
internas, é tida como a primeira transição pacífica de poder desde a
independência do país em 1960. Efetivamente, tendo em conta as restantes
transições (em que chefe de Estado em regra fugia para o exílio ou era
assassinado), a continuidade do ex presidente Joseph Kabila como senador
vitalício foi surpresa, tendo em conta o histórico que o país tem. Foi então
com surpresa geral que vimos como vencedor das eleições o atual presidente Félix
Tshisekedi assumir as funções como chefe de Estado.
O primeiro
mandato do novo presidente teve sinais mistos: marcado pelas tensões com os
membros “Kabilistas” no governo e no parlamento, Tshisekedi a ritmo procurou
marcar o seu espaço no palco político congolês. Ao mesmo tempo que Tshisekedi
procurava o seu espaço, internamente viu a emergência de um novo foco de
rebelião no Kivu (sobretudo o movimento rebelde M23) e os islamitas no Ituri,
as províncias do cobalto. Isso deu origem a (mais uma) terrível vaga de
refugiados, sendo que a ONU contabiliza cerca de 7 milhões de congoleses que
vivem em campos de refugiados no leste do país.
No campo
económico, o país tem crescido acima da realidade africana, mas os níveis de
desenvolvimento são ainda muito reduzidos, tendo em conta a enorme riqueza
mineral do país e o baixíssimo nível de vida do povo congolês, um dos mais
pobres do mundo. A insatisfação mantém-se nas condições de segurança e,
sobretudo, na integridade territorial do país, consecutivamente violada por
diversos movimentos rebeldes apoiados por atores de todo o mundo. Ao mesmo
tempo, a insatisfação com a missão de paz no país (MONUSCO) demonstra as enormes
fragilidades que ainda hoje a ONU tem, sendo que um dos pontos mais sensíveis
na política interna congolesa é o da avaliação da saída dos capacetes azuis do
Congo, um tema que já abordei.
No que toca ao campo
interno, os índices de democracia no país mantiveram-se muito tímidos: sinal
disso foi a proibição das manifestações de contestação do ato eleitoral após a
divulgação dos primeiros resultados.
É, portanto,
neste contexto que cerca de 70 milhões de eleitores foram chamados às urnas,
numas eleições que alguns setores da oposição e Igreja Católica caracterizaram
como uma desorganização organizada: em virtude da vaga de refugiados e deterioração
das condições de segurança, milhões de congoleses não puderam exercer o seu
direito de voto. Por outro lado são de destacar imensos problemas logísticos no
país na realização do ato eleitoral: a abertura das urnas e assembleias de voto
foi muito irregular por todo o país, tendo ocorrido a horas diferentes e dias
diferentes, sendo que houve muitos locais onde não chegou a acontecer; milhões
de eleitores ficaram excluídos do recenseamento eleitoral pelas condições de
conservação dos cartões de eleitores; diversos jornalistas apontam para vícios
nas máquinas de votação eletrónica (já usadas nas eleições de 2018), sendo que
a oposição apontou para um enorme risco de fraude eleitoral. Neste momento, a
comissão eleitoral aponta para uma taxa de participação nas eleições a rondar
os 44%, sendo que dos resultados divulgados há uma vantagem esmagadora para a
reeleição do atual presidente em números superiores a 70% dos votos.
A democracia
congolesa, face ao exposto, mostrou que ainda tem um longo caminho a percorrer:
é muito difícil fazer-se um ato eleitoral democrático e livre se há uma
gritante falta de infraestrutura, organização, vontade política, recursos
financeiros e segurança. Uma democracia faz-se com instituições sólidas, e
apesar de saudar que as eleições tivessem sido realizadas nos termos
constitucionalmente definidos, receio que outro cenário que não fosse a vitória
esmagadora de Tshisekedi estivesse condenada desde início. Resta ver como será
o segundo mandato do atual presidente e veremos qual será o seu legado na História
da República Democrática do Congo.
Geralmente
termino os artigos sobre o Congo num tom pessimista, mas neste artigo quero
fazer algo diferente. Apesar de toda a instabilidade do país, há algo
verdadeiramente que queria destacar, uma vontade e ativismo político que o povo
congolês tem demonstrado. O número de candidatos a estas eleições e o crescente
crescimento do ativismo cívico (seja o movimento estudantil “Lucha” ou, o que
destaquei na imagem deste artigo, o movimento “o meu voto não está à venda”),
são sinais que a cultura democrática começa a instalar no Congo, bem como uma vontade
de criação de um futuro diferente do que tem sido toda a história do país. Talvez,
a solução para os problemas do Congo já esteja ou já se comece a formar no seu
povo, que merece um futuro de paz e prosperidade.