sábado, 31 de dezembro de 2022

A Matemática como forma de exercer poder e controlo sobre as massas. Determinismo vs Relativismo – Marco Garcia

 

Prólogo: Não queria deixar de terminar este ano de 2022, que foi o ano que mais publiquei nesta página, com algo que queria fazer há muito. Desde 2018 que queria trazer um convidado para publicar neste blog. Nos últimos dias, na sequência de uma troca de mensagens com o meu estimado colega e amigo Marco, (a quem lhe chamo “a fénix”), ele partilhou comigo este texto da sua autoria, o qual acho que é bom demais para ficar só entre nós, e que deve ser partilhado com o mundo.
Quem me conhece, sabe que gosto e incentivo este prazer que tenho com a escrita, e fico muito feliz com o texto do Marco. Sinto-me realizado por ele ter aceite este meu desafio, desafio este que quero estender a todos vós que acompanham esta página: cultivem o lado criativo e intelectual que têm em vocês! Sem mais demoras, fica aqui o texto do Marco. Feliz 2023 para todos (Luís Araújo).


Podemos entender completamente a realidade? Se acreditarmos que no Universo não existem duas coisas iguais, então a equação 1+1=2 está errada, 1+1 teria de ser diferente de 2, ou maior, ou menor que dois, tudo depende da visão que o observador tem do mundo. Isto é matemática, são números, que existem para justificar aquilo, em que nós, sujeitos observadores, acreditamos ser a realidade. Mas tudo depende daquilo que o observador acredita. Existe quem acredite que esta equação é absoluta, ou seja, que 1+1=2, e que só pode existir esta verdade, que a equação apenas pode ter um resultado: foi isso que nos ensinaram na escola, ou seja, uma visão completamente determinista e absolutista do mundo.

Contudo, há quem acredite que a equação seja relativa, ou seja, que pode ter vários resultados. Porquê? Porque depende daquilo que estamos a falar, tudo depende do contexto, e este pequeno pormenor, faz toda a diferença em saber se esta equação está certa ou se está errada. A matemática explica isso? Não, não explica. A matemática foi criada para simplificar a nossa realidade, mas não é a própria realidade, é apenas uma simplificação imperfeita da mesma, que foi levada longe demais, por todos aqueles que acreditam no determinismo como forma absoluta de explicar a realidade e não tiveram a humildade de reconhecer que o determinismo é apenas uma parte dessa realidade. Dito de outro modo, a matemática é necessária para explicar a realidade mas não é suficiente. Richard Feynman, que recebeu o prémio Nobel da Física em 1965 foi um dos pioneiros da eletrodinâmica quântica, e afirma que os matemáticos estão a lidar somente com a estrutura do raciocínio, não se preocupando com o que estão a falar, nem sequer precisam de saber sobre o que estão a falar ou como eles dizem, se aquilo que eles dizem é verdade.

Passo a explicar: a matemática gera conhecimento, mas não gera entendimento, (muito menos gera sabedoria), ou seja, a matemática, os números, são necessários para explicar qualquer coisa, mas não são suficientes. Segundo Feynman, se se afirmar que os axiomas tal, tal, e tal, que consequências práticas podemos retirar? Então a lógica pode ser realizada sem se saber o que são essas palavras tal, tal, e tal, o que significam? Dito de outro modo os matemáticos preparam o raciocínio abstrato que está pronto a ser usado, se tivemos apenas um conjunto de axiomas acerca do mundo real. Não obstante, existem disciplinas que, para além da matemática, atribuem significado a todas as frases, e esse significado gera entendimento, ou seja, a matemática é uma linguagem universal, mas não é absoluta, ela precisa de outras disciplinas como por exemplo a física, para gerar entendimento. Temos de ter um entendimento das ligações das palavras com o mundo real, e isto é um problema que, de todo, não é resolvido pela matemática. A matemática diz-te como é que as coisas são feitas, mas não te explica porque é que são feitas da maneira que são feitas e porque é que não podem ser feitas de outra maneira. 

Existem várias formas de olhar para um problema, e existem várias soluções para um mesmo problema, todas elas válidas e certas, que a matemática não reconhece, a matemática apenas reconhece uma forma, que é a forma geral e abstrata. Os matemáticos também gostam de fazer o seu raciocínio tão geral quanto possível. Se disseres que tens um espaço com 3 dimensões, altura, largura e comprimento, e se lhes começarem a perguntar sobre teoremas, eles começam por dizer, reparem, “vocês tem um espaço de n dimensões e aqui estão os teoremas”. Sim, mas eu quero apenas para o caso de 3. E eles dizem, nesse caso é só substituir o n por 3, e isso resulta em que muitos daqueles teoremas complicados tornam-se muito mais simples, porque acontece que existem casos especiais, e a realidade do mundo é feita de casos especiais, e não de casos gerais, porque os problemas que tentamos entender no dia a dia são especiais, não são gerais, porque todos nós temos uma visão diferente, da natureza da realidade. Nós não somos todos iguais, nós somos todos diferentes e únicos, e todos entendemos os problemas e sentimos de diferentes formas. Nós estamos sempre a falar de alguma coisa específica e quando nós soubermos o que é que estamos a falar, o pobre matemático traduz isso para uma equação em que os símbolos não significam nada para ele, em que ele não tem nenhum guia a não ser, rigor matemático, e cuidado no argumento: o rigor matemático de grande precisão não é muito útil no mundo real, nem o é a moderna atitude dos matemáticos quando olham para os axiomas. 

Agora, os matemáticos podem fazer o que eles quiserem, não os devemos criticar, porque eles não são escravos do mundo real, o mundo real precisa deles, eles são necessários, mas não são suficientes. Para que se entenda o mundo através da matemática são necessárias outras disciplinas, e é a forma como todas as disciplinas se relacionam que produz esse entendimento, e não a forma como essas disciplinas se comportam isoladamente. 

Voltando à nossa equação, 1+1=2, se eu vos perguntar se esta equação está correta, o que é que vocês devem responder? Depende, se estivermos a falar de átomos, por hipótese, um átomo de hidrogénio tem menos massa do que a massa combinada do protão e do eletrão que o compõe. Como é que algo pode ter menos massa do que a soma das suas partes? Por causa disto E=mc2,ou m=E/c2. Isto acontece porque a energia potencial pode ser negativa. Então a energia potencial de um protão e eletrão dentro de um átomo de hidrogénio é negativa, mas a energia cinética do eletrão que gira em volta do átomo é positiva, mas acontece que a energia potencial é negativa o suficiente, que o resultado da soma da energia potencial com a energia cinética é negativo, e portanto, m=E/c2 é negativo, e um átomo de hidrogénio pesa menos do que as massas combinadas das suas partes. Aliás, todos os átomos da tabela periódica pesam menos do que os protões eletrões e neutrões que os compõem, o mesmo se passa com as moléculas, uma molécula de oxigénio pesa menos do que dois átomos de oxigénio, porque a energia potencial e cinética desses átomos, assim que eles formam uma ligação química fica negativa. Neste caso, uma parte mais uma parte, não é igual a duas partes, é menor do que duas partes consideradas isoladamente, logo, 1+1 não é igual a 2,  1+1<2, isto porque um sistema não é a soma das suas partes mas sim o produto das suas interações. Tal significa que as partes são interdependentes e não podem ser explicadas pelo método analítico. 

A teoria da relatividade postula que tudo no universo é relativo.  Niels Bohr um dos físicos mais importantes no desenvolvimento da mecânica quântica, responsável pela teoria da complementaridade, afirma que “não é a realidade que é subjetiva, nós, sujeitos observadores é que fazemos parte da realidade – que observamos”. Tudo depende do ponto de vista do observador, o tempo é relativo, depende da forma como cada um de nós o gasta. Esta teoria é o oposto da teoria absolutista do universo que diz que 1+1=2 e não pode ser de outra maneira. 

Durante mais de 400 anos, em que estivemos expostos a uma visão determinista da realidade, nós absorvemo-la por osmose no processo de aculturação e esta forma dominante de pensar está assente no método analítico, e essa é a base da nossa cultura. O problema é que esta forma de pensar não explica nada, apenas diz como se faz algo com base em regras rígidas que nada tem que ver com a realidade: dá conhecimento, mas não dá entendimento. Sempre que tentamos explicar a realidade através desta forma de pensar, deparamos com uma série de dilemas para os quais não encontramos explicação e foi por isso que, em 1954, Bertalanfy, encontrou uma outra forma de pensar, compatível com a realidade experienciada por nós, onde o livre arbítrio e o propósito fazem sentido, e acabou com a maioria desses dilemas. Essa nova forma de pensar é sintética, em oposição à forma analítica, e foi isto que Einstein quis dizer com a célebre frase: 

“Sem mudarmos os nossos padrões de pensamento, nós não vamos ser capazes de resolver os problemas que criámos com os nossos atuais padrões de pensamento”.

É preciso uma nova forma de pensar, e a essa nova forma de pensamento deu-se o nome de Systems Thinking. O pensamento sistémico coloca o foco no desempenho do todo, e não no desempenho das suas partes. O importante não é saber o quão bom é o desempenho das partes, mas sim o quão bem elas se relacionam para o desempenho do todo. Isto tem a ver com a forma como as partes se relacionam entre si, e isto requer um outro tipo de organização, completamente diferente daquela que estamos habituados, com diferentes métricas de desempenho. Precisamos de uma outra forma de pensar sobre os sistemas sem ser através da análise. 

O desempenho de um sistema não é a soma das suas partes, mas sim o produto das suas interações. Mas porque é que ainda continuamos a pensar de forma determinista? Porque é mais fácil controlarmos e exercermos poder sobre as massas, se todos acreditarem no determinismo como forma absoluta de ver a realidade, isso ajuda a criar uma sociedade com grande poder de argumentação e muito rigor matemático, mas com muito pouco entendimento sobre a realidade. Isso tem ajudado à globalização, através da produção em massa, do ensino em massa, do consumo em massa, de comunicação em massa, de entretenimento em massa e até das armas de destruição em massa, e isso tem provocado um aumento das desigualdades sociais e todo o tipo de dilemas que a nossa sociedade enfrenta, criadas pelo determinismo, porque o determinismo continua a acreditar que é possível o total entendimento da realidade, e que só existe uma realidade, por outro lado, o relativismo acredita que o total entendimento da realidade é um objetivo do qual nós nos vamos aproximando, mas que  é impossível de alcançar. (Marco Garcia)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Guerra e Paz (1869), Lev Tolstói – A história como equilíbrio entre liberdade e necessidade


 

O homem, em ligação com a vida comum da humanidade, surge como sujeito às leis que determinam essa vida. Mas esse mesmo homem, independentemente dessa ligação, surge como livre. Como deve ser encarada a vida passada dos povos e da humanidade – como produto da atividade livre ou não livre dos homens? Esta é a questão que a história coloca.”

 

Recordo que em 2014, aquando de uma optativa do curso de Direito chamada História das Relações Internacionais, incontornavelmente foi tema de grande atenção e interesse a figura de Napoleão Bonaparte e o Congresso de Viena. Meses antes, nas férias de verão, tinha dado as minhas primeiras chances aos clássicos russos, começando pelo “o Jogador” e o “Demónios” de Dostoievski, mas sabendo da temática e por o Guerra e Paz ser incontestavelmente uma das grandes obras jamais produzidas pela literatura mundial, resolvi aventurar-me neste longo livro.

Guerra e Paz destaca-se pela sua singularidade: rapidamente alterna entre vários planos narrativos diferentes, em datas diferentes. A história começa em 1805, tem o seu ponto alto em 1812 aquando da desastrosa campanha francesa na Rússia, e termina o plano narrativo em 1820. Entre os planos narrativos destacam-se os personagens Piotr “Pierre” Bezukov, o príncipe Andrei Bolkonski e a sua família, tal como a família Rostov, destacando os irmãos Nikolai e Natacha. É também complexo porque entre os planos narrativos alterna com um plano de profundas reflexões do autor, que analisa a história como disciplina, os acontecimentos passados e o seu impacto sobre o seu presente. Por esse motivo o Guerra e Paz, arrisco-me a dizer, é uma obra que porventura terá servido de advento ao que viria ser o modernismo literário de século XX pois não se enquadra numa só categoria típica literária, sendo que pode ser visto como um romance de amor, romance histórico, livro de filosofia, livro de estratégia militar e guerra, ou até mesmo ensaio de ciência política ou história.

Há imensos aspetos que poderia destacar do romance. A sua narrativa interessante já foi objeto de várias adaptações ao cinema, sendo que a que mais gostei foi a mini série da BBC de 2016 com Paul Dano e Lily Jane, sendo que cada plano narrativo tem a capacidade de viciar o autor em saber o que vai acontecer a seguir àquela personagem, algo difícil de fazer numa só obra com tantos planos de ação.

O que quero retirar deste artigo e o que fez deste livro um dos meus preferidos durante muito tempo e o motivo pelo qual 7 anos depois de o ter lido continuar a ter as suas conclusões muito presentes na minha memória é exatamente o que levo do livro para o meu dia-a-dia. Nunca escondi o meu gosto pela História, e acho que o interesse e entusiasmo da disciplina deve ser difundido, até porque, como Tolstói bem escreve, somos nós, agentes comuns que a fazemos. A segunda parte do epílogo do Guerra e Paz são precisamente as reflexões finais de Tolstói sobre o objeto da história: serão aqueles grandes decisores? Napoleão que ordenou a invasão à Rússia? Hitler e as campanhas sangrentas pela Europa nos anos 30 e 40? Johnson e a intervenção americana no Vietname? Ou talvez Vladimir Putin e a atual intervenção na Ucrânia?

Frequentemente existe uma tendência social de canalização de responsabilidades para os órgãos decisores, sendo que muitas vezes tais ordens são executadas em grande medida pelos inferiores hierárquicos. Afinal, foi Putin diretamente que lançou um míssil a Kiev?

A nossa noção de liberdade e necessidade diminui e aumenta gradualmente, conforme a maior ou menor ligação com o mundo exterior, o maior ou menos afastamento no tempo e a maior ou menos dependências das causas, em que observamos o fenómeno da vida humana.”

 

Tolstói demonstra-nos que a liberdade conjugada com a razão e a necessidade são o objeto da história dos povos e, em termos avançados para a época, desconstrói a razão e os elementos das ciências naturais como única e derradeira fonte da história, algo altamente minoritário entre os pensadores da época. Tal pensamento dá muito que refletir no ano de 2022, na sociedade atual.

“Só nesta nossa presunçosa época de popularização do conhecimento, graças ao mais forte instrumento da ignorância (a difusão da imprensa), a questão do livre-arbítrio foi levada a um terreno em que não se pode já colocar a própria questão. No nosso tempo, a maioria das chamadas pessoas avançadas, ou seja, uma multidão de ignorantes, aceitou as obras dos naturalistas, que tratam apenas um dos aspetos da questão, como a solução de todo o problema.”. 

Não resisto em fazer um paralelismo com um personagens de One Piece, uma série que sigo, destacando o almirante Kizaru (Borsalino): ele é um personagem que muito representa a nossa sociedade – está inserido numa sociedade complexa e pouco linear, em que muitas vezes surgem por fontes superiores ordens completamente injustas e cruéis, sendo que ele não as toma, mas tão pouco as questiona, mantendo uma postura sarcástica e descontraída dizendo que estava só a fazer o seu trabalho e “ordens são ordens”. Quando Tolstói nos leva a concluir que o exercício da nossa liberdade dentro do contexto em que vivemos é o verdadeiro objeto da História, transmite em termos ainda hoje atuais uma responsabilidade que temos como cidadãos e como agentes da História, uma responsabilidade que muitas vezes, tal como o almirante Kizaru, preferimos ignorar porque é só o nosso trabalho. Num mundo como o nosso de 2022, com níveis de literacia diferentes, acesso diferente a informação e com recursos que a sociedade novecentista seria incapaz de conceber, este desafio que Tolstói nos fez e nos responsabiliza mais do que nunca, faz com que cada um de nós coloque a mão na consciência e se pergunte: que tipo de sociedade queremos? Que tipo de justiça queremos para o nosso mundo?






A liberdade é aquilo que é examinado. A necessidade é aquilo que examina. A liberdade é o conteúdo. A necessidade é a forma. (…) E só com a sua união se obtém uma clara representação da vida do homem.”

Tal como os protagonistas do Guerra e Paz, destacando Pierre Bezukov, que no seu contexto foi várias vezes desafiado com estas questões, também nós temos essa responsabilidade. E este é um dos motivos pelos quais o Guerra e Paz permanece na minha memória como uma das melhores experiências literárias que já tive.