sexta-feira, 21 de junho de 2019

O assassinato do presidente (2001) – Um "House of Cards" congolês?


O mausoléu de Laurent Kabila em Kinshasa. Engenheiros norte coreanos participaram na sua construção.


No dia 16 de janeiro de 2001, o presidente da República Democrática do Congo Laurent Kabila, foi assassinado, tendo o seu filho, Joseph Kabila, sucedido no poder 10 dias depois. No ano seguinte deu-se inicio ao julgamento sobre o crime, no qual mais de 100 pessoas foram acusadas, sendo que dessas 100, 25 foram condenadas à morte. Os restantes foram condenados a prisão perpétua ou a penas bastante longas. Esta sequência de julgamentos, que chegou a ao caricato de juízes e procuradores das primeiras audiências a terminarem no banco dos réus, não chegou a nenhuma conclusão sobre o que verdadeiramente aconteceu nesse 16 de janeiro, nem sobre as razões do crime. Para a comunidade internacional, todo este “espetáculo” foi visto como uma purga no regime. A política é um mundo complexo onde por vezes o pior da humanidade prospera, e a ética (e todo aquele humanismo que nós consideramos essencial) é insignificante.
 
Laurent Kabila, o presidente assassinado.
Num excelente documentário feito pela Al Jazeera, disponível na sua página do Youtube desde 2011, podemos constatar que na versão oficial, Laurent Kabila foi assassinado por um dos seus guarda costas chamado Rachidi Kasereka. Este jovem foi uma antiga “criança soldado”, lutou na primeira guerra do Congo, e depois de disparar no presidente, ao tentar escapar do palácio presidencial, foi interceptado e imediatamente executado pelo coronel Eddy Kappend, uma importante figura militar, que no dia seguinte foi à televisão nacional apelar pela calma e impor a ordem nas forças armadas. À época decorria a Segunda Guerra do Congo, um conflito que foi absolutamente devastador, e para sua melhor compreensão, remeto para o meu artigo generalista que se pode consultar aqui.

Eddy Kappend acabou por ser acusado de tentativa de golpe de estado, e foi uma das 25 pessoas condenadas à morte quando os julgamentos começaram, no ano seguinte. Oficialmente, ainda ninguém foi executado, mas alguns dos condenados já morreram na temível prisão de Makala. A equipa da Al Jazeera tentou "reabrir o caso". Mesmo sem chegar à verdade do que aconteceu, chegou a conclusões interessantes, apresentando a teoria de que os países ocidentais e o Ruanda instrumentalizaram um sentimento de ódio no exército depois do presidente Laurent Kabila ter executado um importante general, Anselme Masaso, e com a ruína de um comerciante de diamantes libanês chamado Bilal Heritier, que viu os seus privilégios sobre a riqueza mineral do país arruinados quando Kabila os nacionalizou, para financiar o esforço de guerra. Surge o nome de George Mirindi, um importante general na época, que alegadamente foi cúmplice no crime (ele alegadamente iria ajudar Rachidi a escapar do palácio). No dia anterior ao julgamento, Mirindi fugiu da prisão e hoje vive no exílio na Suécia. Este ainda participou neste documentário, mas recusou-se a dar informações precisas, deixando a equipa de jornalista na incógnita e sem saber os contornos do seu envolvimento. 
O documentário, sem o referir abertamente, também deixa a entender que o filho, Joseph Kabila, possa ter tido algo que ver com o assassinato do pai, sobretudo pela ordem, por si dada, a uma equipa de militares de executar 11 libaneses que eram potenciais testemunhas.
 
O General Joseph Kabila, dias depois do assassinato do pai e um pouco antes da sua tomada de posse.
Finalmente, no início deste ano, George Mirindi lançou um livro sobre o tema, dando a sua verdade sobre o que aconteceu. Segundo o próprio, tudo quase tudo o que foi dito sobre o caso, e a versão oficial, é mentira, e que nem ele nem o comerciante libanês foram os responsáveis, segundo a versão oficial de Kinshasa. Como o próprio indica, no exército congolês havia uma enorme onda de corrupção, desde dissipação de dinheiro público (enormes reservas de francos congoleses foram trocados por intermediários do exército por dólares a esta altura) para a aquisição de armamento, até ao abandono de posições estratégicas e de um enorme arsenal para as tropas inimigas. Em plena segunda guerra do Congo, e com o leste do país “nas mãos” do inimigo, Laurent Kabila estava dependente dos seus aliados estrangeiros (onde se destacaram Angola e o Zimbabwe) para salvar o seu regime, dado que o exército não tinha mais a sua confiança. Desde modo, a perda da cidade de Pweto para o Ruanda no final de 2000, que era a principal base militar naquela região, e de enormes quantidades de armamento deixadas para o inimigo, levou à decisão de se iniciar uma purga no exército. Menos de um mês depois de anunciada essa decisão, o presidente foi assassinado.
O livro de Mirindi, publicado no inicio deste ano.
Em ambas as versões da história, qualquer que se escolha, fica a ideia de que o país funciona, como diz Antoine Vumilla num dos documentários que citei, na base da hipocrisia, corrupção e violência. Acrescentava ainda, na base da mentira. Nesta altura o regime de Laurent Kabila já se tinha mostrado absolutamente inepto e cleptocrata, ao adoptar rapidamente uma via autoritária e a conduzir o país a uma guerra que foi a mais mortífera desde a segunda guerra mundial. E também é certo que muitos dos grandes agentes internacionais interessados no país, como os EUA e o seu aliado africano Ruanda, queriam uma mudança de regime em Kinshasa, e Laurent Kabila, ao tomar decisões políticas deficientes, deu o pretexto perfeito para o seu fim. A tudo isto, associo todo o ambiente de corrupção e ganância no circulo do poder congolês, cuja “fome” pelo lucro, destruiu a vida a imensas pessoas. Quase todas as pessoas que Mirindi citou como responsáveis no seu livro, ou morreram ou ainda estão presas.  O mistério de quem esteve por detrás do assassinato de Laurent Kabila continua a atormentar o país, que vive permanentemente numa das piores realidades da atualidade.

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