quarta-feira, 13 de março de 2019

Ruhnama e resquícios do totalitarismo de século XXI: o Turquemenistão.


Coreografia de apoio ao presidente do Turquemenistão, algures em 2005. Esta atuação tem notórias semelhanças com os "Mass Games" na Coreia do Norte.
Quando falamos em totalitarismo, na nossa mente ocorrem imagens de cenários infernais e cruéis. Lembramos também das palavras de Orwell e de Arendt, da experiência nazi, e até do temível regime norte coreano. Mas a realidade é que esses cenários totalitários estão longe de terem desaparecidos. Existem, e em muito mais abundância do que se possa pensar.
Ashgabat, capital do país, para se ter noção, é das cidades do mundo com mais "mármore italiano per capita".

Vou falar de um país, quiçá desconhecido para a maioria das pessoas, (o que não é de estranhar, dada a distância em que se encontra) e que aparentemente tem pouca ligação connosco: o Turquemenistão! Inicio este texto com as notas que o país é uma antiga república soviética, situada na Ásia Central, faz fronteira com o Uzbequistão a norte, com o Irão e o Afeganistão a sul e leste, e a ocidente é banhado pelo mar Cáspio. Historicamente é habitado por pastores nómadas e comerciantes da famosa e milenar “Rota da Seda”; desde a chegada do czar Pedro "o Grande", o Turquemenistão tem tido uma forte influencia russa, influencia essa que continuou na era soviética, no qual o país era uma das 15 repúblicas socialistas soviéticas que integravam a URSS. Com o colapso soviético, o país tornou-se independente em 1990, mas continuou a ser governado pelo antigo dirigente local do partido comunista soviético, Saparmurat Niyazov, que se reinventou, trocando a postura de “comunista da velha guarda” para a de nacionalista convicto: para se ter noção, Niyazov chegou mesmo, em 1989-90, a aliar-se ao grupo que planeava derrubar Gorbatchev na URSS, mas depois dessa tentativa ter fracassado, aproveitou o vazio no poder que havia no Turquemenistão para se "converter" a feroz nacionalista, defensor da independência do seu país. Para se ter noção do regime que este instaurou no novo país independente, hoje o Turquemenistão, segundo a ONG "Repórteres sem fronteiras", é o terceiro pior país do mundo em liberdade de imprensa, só a Eritreia e a Coreia do Norte têm piores classificações... Um dos destaques e grandes preocupações deste regime é mesmo o do acesso à informação.



O presidente do país entre 1990 e 2006, Saparmurat Niyazov, auto intitulado de Turkmenbashi.
Foram muitas as "extravagâncias": cancelou o acesso à internet, argumentando que a revolução digital não é para o seu povo; fechou todos os hospitais do país, tirando os da capital Ashgabat, argumentado que todos se deviam deslocar à capital para receber tratamento, vivessem onde vivessem; cortou as reformas a um terço dos reformados e reduziu muito significativamente as restantes, justificando com a necessidade do equilíbrio das finanças públicas do país e de que nenhum cidadão devia ser um fardo para com as instituições políticas; alterou o calendário em vigor no país para nomes em homenagem a heróis nacionais (entre esses, o próprio presidente e a sua mãe); mandou fechar as bibliotecas rurais do país, com a justificação de que o turcomeno não lê, e que todos os livros que precisa são o Corão e o Ruhnama. Também criou, em torno da sua figura, um enormíssimo culto à personalidade, por todo o país imagens, estátuas, pósteres, programas de televisão e rádio, todos eles destacavam uma imagem do presidente, imputado de todas as virtudes. Dois exemplos desses excessos, a estátua que construiu na capital, talhada a ouro, que rodava em direção ao sol; e o monumento que mandou erguer também da capital do seu livro, "Ruhnama", escrito pelo próprio presidente, significa “livro da alma”, e em suma corresponde a toda a leitura essencial que um turcomeno necessita (nas suas palavras).

O monumento em Ashgabat que simboliza o Ruhnama, uma "estátua movediça" como podem ver no documentário do primeiro link. Vou aqui aproveitar para citar um esboço da terceira parte do livro, intitulada de "Nação turcomena" (tradução minha da versão inglesa do livro, anotada por Andrew Edwards: "(...) Nós temos imensos recursos. Nós queremos retirar o máximo de benefício e o máximo de utilidade deles. Mas nós também queremos que a nossa relação com os outros países seja baseada da reciprocidade, igualdade e cooperação. O destino deu ao Turquemenistão a oportunidade de ser um centro de relações entre a Europa e a Ásia. Os nossos recursos no subsolo e na superfície dão-nos a possibilidade de entrar numa era de ouro para o Turquemenistão, num século glorioso. No passado, os nossos antepassados impuseram-se no mundo pela força da espada; hoje, devemo-nos destacar pela nossa racionalidade e pelo nosso imenso valor espiritual. O Turquemenistão é conhecido pelos seus cavalos Ahalteke, pelas suas carpetes que são icónicas no mundo da arte, e pela sua beleza natural. Hoje, pela sua política pacifista, a nação turcomena é objeto de inveja e admiração por todo o mundo. Como o nosso grande pensador Magtymguly Pyragy dizia: "Olha para o futuro, não esqueças o passado, mantém um discurso educado, restringe a tua raiva. Se tiveres de falar, diz coisas agradáveis; o povo já sofreu demasiado com coisas más". Eu consigo prever muitos dias felizes para o futuro. Eu acredito que não há nada que consiga abalar a nossa felicidade e hoje e sempre, sinto orgulho no nosso estatuto de imparcialidade. (...)". Independentemente dos capítulos, a maneira de escrever do livro é muito similar ao excerto citado, há imensa repetição de ideias e um discurso extremamente circular e repetitivo. O Ruhnama não é, de todo, uma obra de arte literária, mas é um livro interessante para tentar compreender os totalitarismos que ainda existem. 
O Ruhnama, na parte citada, destaca a singularidade do povo turcomeno e do Turquemenistão, nomeadamente os seus atributos humanos e naturais, e mostra sinais de um poder político de caráter autoritário "com forma simpática". 
Mas para além do citado, por todo o livro mantém muito do era ideologicamente escrito na URSS, nomeadamente do decreto das nacionalidades e do decreto da paz: quanto ao primeiro, o livro faz muitas referências ao Corão, dado que o islão é a religião maioritária, mas ressalva sempre a laicidade do estado, bem como a existência de minorias étnicas no país, russos e uzbeques sobretudo, que têm outros credos e culturas, daí que o texto vá muito ao encontro de tentar unir todos no país para uma "causa comum"); já quanto ao decreto da paz, como se pode ver no citado, a ideia da neutralidade política nas relações externas em prol da segurança do regime, situado numa zona "fértil" em conflitos, sobretudo próxima do Afeganistão, não só tem ajudado diplomaticamente, como até tem feito cair o país em boas graças, tanto com a Rússia como com os EUA, que não só beneficiam da grande riqueza natural do país, como conseguem ter presença militar num país com excelente localização geoestratégica - muita da tolerância internacional do governo turcomeno se faz nestes termos. 
Ainda sobre o Ruhnama, este recorre muito à ideia de Orguz Han como o pai espiritual do país, e nesta medida (e daí a maior diferença com a ex URSS), o atual Turquemenistão tenta criar uma imagem de nacionalismo como fundamento de unidade e estabilidade do país (mesmo que na prática o país não tenha ascendente num estado propriamente dito, como pude referir no início, os turcomenos eram um povo nómada), tudo para procurar novos argumentos para consolidar o poder. 

O livro de Niyazov/Turkmenbashi não é um corpo bem estruturado e preciso, usa uma escrita extremamente circular, repete imenso as ideias, de forma a formatar a mente dos leitores. É comum de uma linha para a outra, mudar o assunto, desde os hábitos à mesa de um turcomeno para os infortúnios da sua vida familiar. Em jeito de curiosidade, Niyazov foi órfão, o seu pai morreu na Segunda Guerra Mundial, e a sua mãe e família próxima morreram num sismo quando este tinha 8 anos.

O país está situado numa posição estratégica apetecível.

Focando agora sobre a situação real do país, deixo aqui um link com relato pessoal de Stanislav Volkov, um turcomeno da minoria russa no país, que acompanhou o "crescimento" do Turquemenistão independente e chegou a ser atacado com ácido em Asghabat. Para além de questões raciais, denuncia: os cortes de eletricidade e água, em prol do abastecimento dos espaço públicos (jardins, fontes, monumentos megalómanos); para o número alarmante de pessoas que perdem as suas casas, para dar espaço para as grandes obras públicas; para o problema prisional do país, onde muitas pessoas "desaparecem" e do forte controlo policial em todo o país, os casos de tortura e acesso à internet, entre outros. Um relato verdadeiramente impressionante e assustador sobre o que é o dia-a-dia no Turquemenistão.

Dois opositores merecem também destaque: no primeiro link que deixei acima, Avdy Kulliev, antigo ministro dos negócios estrangeiros, que viveu os últimos anos da sua vida no exílio em Moscovo, disse que “provavelmente seria melhor morrer num plutão de fuzilamento, do que ser preso no Turquemenistão". Já Boris Shikmuradov, também ele antigo ministro dos negócios estrangeiros, tem uma história particularmente trágica: numa viagem à China declarou a oposição ao seu governo, denunciando as suas técnicas de tortura cruéis e abuso dos direitos humanos, manifestando a intenção de regressar ao país. Em dezembro de 2002, a comitiva presidencial foi recebida com uma pequena troca de tiros na capital Ashgabat, tendo Shikmuradov sido capturado pouco tempo depois. Este confessou o crime na televisão estatal, como podem ver na imagem abaixo, referindo-se a si próprio como "um cão drogado pedófilo e traidor" enquanto elogiava o presidente Niyazov. Foi condenado a prisão perpétua, e numa das últimas declarações, segundo Simon Montefiore, no seu livro "100 monstros", cita o antigo ministro que terá dito que foi torturado com uma marcara de gás sem ventilador, e enquanto isso lhe acontecia, eram reproduzidas fitas em que ouvia a voz dos seus familiares a serem também torturados. A partir daqui, o seu paradeiro é desconhecido. Niyazov morreu em dezembro de 2006, vítima de um ataque cardíaco, o seu sucessor Gurbanguly Berdimuhamedov, numa visita aos EUA em 2007 disse que "achava que ele estava vivo". Recentemente, a sua esposa Tatiana Shikmuradova lançou um apelo a que se faça uma investigação internacional para saber o que aconteceu ao seu marido. Segundo a publicação da página Turkmen Initiative for Human Rights", o antigo ministro morreu numa antiga prisão soviética (entretanto demolida) entre 2003 e 2005, ou seja, ainda sobre a presidência de Niyazov. Mas é impossível ter certezas, os argumentos são por base testemunhal, por isso ainda ficam muitas duvidas por esclarecer nesta situação insólita.




Boris Shikmuradov, visivelmente em mau estado, confessa na televisão nacional o seu crime contra a vida do presidente Niyazov, e é condenado a prisão perpetua. Não se sabe nada do seu estado desde 2003/2004. 

Sobre o sucessor de Niyazov, o atual presidente, Gurbanguly Berdimuhamedov, este manteve no essencial o regime. Inicialmente minimizou, um pouco o culto à personalidade (mas que continua bastante grande), e também reverteu alguns excessos finais do antecessor como o corte nas reformas. Contudo, manteve um uso pessoal e livre dos generosos fundos públicos do país, gastando fortunas colossais em projetos absurdos, como o caso de Avaza, uma pequena cidade onde foram investidos biliões de dólares para a transformar num destino balnear na costa do mar Cáspio (para rivalizar com a oferta turística no Mediterrâneo) que praticamente não tem turistas. Berdimuhamedov é também conhecido pelo seu estilo de vida luxuoso e gastador, tendo já composto uma música de rap, e aparecido em inúmeros eventos desportivos do país, como a equitação. 


É um triste destino para este país. O Turquemenistão tem a segunda maior reserva de petróleo e gás natural das antigas repúblicas soviéticas, mas tem, entre as mesmas, a idade mais baixa na esperança média de vida (67 anos), o pior sistema de saúde, e onde a escolaridade é mais reduzida. Ao mesmo tempo, é conhecido pelo seu sistema extremamente repressivo, o uso de tortura, corrupção, e as condições das suas prisões são assustadoras...


O atual presidente Berdimuhamedov, "estrela" de equitação.


Avaza, uma cidade costeira no mar Cáspio, que o presidente Berdimuhamedov ambicionava transformar num "novo Dubai". Como se pode ver pela foto, não é de todo, um destino balear convidativo.

Duas notas finais sobre o Turquemenistão:

1) Não tenho nenhuma formação em Antropologia, mas embora o Ruhnama sugira o contrário, o país não teve (quase toda a sua história) a estrutura de estado que hoje conhecemos. No passado o país era essencialmente uma comunidade de comerciantes (da famosa Rota-da-Seda) e de pastores nómadas. Pela sua localização, já foi conquistado e ocupado por vários impérios, desde os otomanos aos mongóis e sobretudo os russos. A chegada das tropas do czar Pedro "o grande" e, sobretudo, a era soviética, moldaram quase na totalidade tudo o que é a estrutura do país. É interessante questionar se efetivamente o modelo de estado que conhecemos é o mais vantajoso para qualquer tipo de comunidades, é um problema interessante, talvez um dia possa ter a chance de ter uma pessoa dessa área a escrever aqui.

2) Como conclusão final, muito do totalitarismo soviético foi mantido no Turquemenistão, a "nova ordem" social e institucional foi implantada com pilares no forte controlo da informação e dos meios de comunicação, com uma forte (ainda que a nível interno) presença das forças de segurança no país, e na "reeducação histórica" no país, que não fomenta nenhum livro para além do Ruhnama nessa matéria. Definitivamente ainda existem no nosso mundo este tipo de regimes, este é mais um exemplo no nosso século de uma maneira de construir o estado que pode ser extremamente perigoso para o respeito dos Direitos Humanos (e levado ao limite, para a segurança mundial).


Numa era como a nossa, arrisco-me a dizer que é muito possível que outros regimes similares possam surgir, não nos exatos moldes do século XX, mas adaptados à "revolução digital" e o controla da informação sobretudo. Questões profundas sobre o melhor modelo de estado, as relações entre países e o respeito pelos direitos humanos, devem ser discutidas e muito bem ponderadas, para evitar abusos que não queremos ver (e rever) de novo.