sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Contexto recente da RD. Congo


(Nota – a base deste texto é um outro que escrevi anteriormente para a página de Facebook Um Oitavo, intitulado de “Breve apontamento histórico sobre a República Democrática do Congo”, mas em quase tudo foi modificado e muita informação foi acrescentada).

No Congo decorreu o maior conflito armado desde a Segunda Guerra Mundial. Não obstante, os marcantes acontecimentos deste país africano, estes atingiram (e ainda hoje atingem) muito pouco a consciência popular em Portugal e no mundo.

Apresentando o país geograficamente, a República Democrática do Congo é o segundo maior país africano, ocupa uma área relativamente dispersa, e faz fronteira com Angola e Zâmbia a sul, a leste com a Tanzânia, Burundi, Ruanda e Uganda, e mais a norte com o Sudão do Sul, a República Centro Africana e a República do Congo (mais conhecida por Congo Brazzaville). Foi uma colónia belga, é independente deste 30 de junho de 1960, e as principais línguas são o Francês, o Kikongo (sobretudo perto da fronteira com Angola), o Lingala (mais falado na parte ocidental) e o Suaíli (mais falado na zona oriental). O país ocupa grande parte da floresta do Congo, a segunda maior floresta do mundo, superada apenas pela Amazónia.



Para melhor compreender o país,  vou fazer um breve apanhado histórico desde 1990. À época o país chamava-se Zaire e era dirigido com mão de ferro pelo ditador Mobutu Sese Seko. O descontentamento popular era muito grande e o país estava à beira do colapso. Mobutu beneficiou da Guerra Fria porque era um importante aliado regional ao “bloco americano”, mas após a queda da URSS, os seus antigos aliados não tinham mais interesse em apoiar o seu regime: por um lado, porque Mobutu tinha um péssimo histórico de direitos humanos, sobretudo devido à sua temida polícia secreta, a DSP (que hoje no essencial corresponde à milícia Mai Mai), que ia tão longe como torturar e executar de maneira cruel os adversários do regime; e por outro lado, porque o "capitalismo" do Zaire era particularmente insólito já que, era impossível que houvesse qualquer atividade económica no país (por mínima que fosse), sem que Mobutu ou alguém a si próximo recebesse parte dos lucros (o que à sua maneira, é semelhante ao fenómeno comum no mundo do crime, protection money).
Ora, o "grande apetite" de Mobutu levou a economia do país ao colapso, já que essa realidade afastava do país a sua (escassa) mão de obra qualificada, bem como potenciais investidores. As consequências foram visíveis: a hiper inflação, a falta de pagamentos, o desaparecimento dos serviços públicos e a ausência de instituições eficientes, levaram o país à ruína. Tudo se podia fazer, a ordem era inexistente. Houve até dois grandes saques (em 1992 e 1994), feitos em primeira linha pelas forças militares mas que muitos populares aderiram, a Kinshasa e ás principais cidades do país, onde todos aproveitavam o que "sobrava" do país: casas foram deixadas sem recheio, lojas e armazéns foram esvaziados, e até os fios de cobre e o combustível dos aviões civis foram furtados! Como dizia Mobutu “no nosso país tudo se vende, pode-se levar o que se quiser”. Enquanto isso, o velho ditador era um dos homens mais ricos do mundo, cuja fortuna veio sobretudo da exploração da riqueza mineral do país, de destacar o cobre, o ouro, o cobalto, os diamantes, o urânio e algum petróleo.

Em 1994, Mobutu permitiu que após os genocídio no vizinho Ruanda, cerca de 1 milhão de Hutus se refugiassem no leste do Zaire, temendo uma eventual vingança do novo governo ruandês. Com isto o ditador procurava algum apoio diplomático pelo gesto humanitário, mas esta decisão veio a ser decisiva para a sua queda: o grupo étnico Hutu, do Ruanda,  foi o responsável pelo genocídio que ocorreu nesses país entre abril e junho de 1994. Nesses 100 dias, foram mortas barbaramente cerca de 1 milhão de pessoas, da etnia Tutsi. Após o genocídio, os rebeldes Tutsis, que lograram conquistar o país, formaram um novo governo no Ruanda, liderado pelo ainda hoje presidente, General Paul Kagame, que, como retaliação à decisão de Mobutu de acolher os refugiados Hutus, apoiou e armou um exército, colocado à disposição de um opositor de Mobutu, sendo o opositor escolhido Laurant Kabila (que foi um antigo contrabandista de diamantes e guerrilheiro marxista, que nos anos 60 no pós independência tinha lutado ao lado de Che Guevara). Subsequentemente, em 1995, foi no Ruanda organizado o plano  (recrutamento, treino militar, aquisição de equipamento de guerra) para derrubar Mobutu, e atacar e punir os Hutus da antiga Interhamwe (a milícia em grande escala responsável pelo genocídio), tendo a guerra iniciado em 1996, sob forma de "revolta popular" de Laurent Kabila para derrubar Mobutu. Mas claro que isso acabou por ser o menos, naturalmente o Ruanda, aliado pelo Uganda e o Burundi também queria beneficiar da enorme riqueza natural da região. A comunidade internacional não reagiu.
 
O Congo tem uma tremenda riqueza mineral, mas a sua exploração é em larga medida feita com meios bastante rudimentares e em condições muito precárias. O uso de trabalho escravo e infantil é comum.
Pois bem, esta foi a Primeira Guerra do Congo. Não foi uma guerra difícil nem para o Ruanda nem para o Kabila. A pouca resistência que havia era a da DSP que, embora fosse que bem treinada, não tinha nem efetivos nem equipamento suficiente para lidar com uma Guerra Civil. Era até comum que os soldados das restantes divisões do exército desertassem ou rendessem sem apresentar nenhuma resistência, por estarem cansados de não serem pagos e da anarquia em que o país caiu. Muitos até se juntaram ás tropas de Kabila! Com um contexto assim, a maior parte das cidades do Zaire acabaram por cair nas mãos dos rebeldes, sem apresentarem grande resistência.
Em maio de 1997 Mobutu fugiu para o exílio em Marrocos e morreu uns meses mais tarde. Kabila entra em Kinshasa a 17 de maio de 1997 e assume o poder, alterando o nome do país de Zaire para República Democrática do Congo (nome atual). Mas Laurant Kabila rapidamente se mostrou inepto para o exercício da presidência do país. Tal como muitos historiadores o descrevem, foi um "ditador de algibeira" como há muitos em África. Em apenas 50 dias, Kabila proibiu a imprensa livre e o multi partidarismo, acabando com as esperanças de quem achava que este iria adoptar um regime democrático. Rapidamente a população que tinha recebido Kabila com alegria, ficou descontente com o novo regime. Opositores políticos foram perseguidos, alguns até executados, e a população continuou a viver na absoluta miséria.

O novo regime de Laurent Kabila foi de tal modo mau, que só demorou 1 ano para o país caísse numa segunda guerra civil: no verão de 1998 Kabila expulsou do país todos os tropas do Ruanda (que o tinham ajudado na primeira guerra), pois não tinha a menor intenção de partilhar o poder e os lucros da exploração mineral com o país vizinho que o tinha posto no poder. O regime Tutsi ruandês não perdoou e consequentemente, aliado do  Uganda e do Burundi, lançou no dia 2 de agosto de 1998 uma enorme invasão ao país para derrubar Kabila. No primeiro mês de guerra, as tropas do Ruanda ocuparam e controlaram quase 2/3 do país e esperava-se que fosse uma guerra rápida e Kabila fosse derrubado numa questão de horas, mas o que o salvou foi a intervenção em sua defesa de vários países africanos, encabeçados por Angola e o pelo Zimbabwe que, com sucesso, contiveram a invasão do Ruanda, obrigando as tropas invasoras a recuar mais para o leste do país. Nesta altura a guerra deixou de ter um cariz político, passou antes para uma vertente essencialmente econômica: a partir do inicio de 1999, a guerra estava num impasse. Nem o Ruanda conseguia capturar Kinshasa, nem Kabila e os seus novos aliados tinham meios para expulsar os invasores. As partes em conflito dividiram-se em 36 grupos armados e a partir daqui todos começaram a lutar contra todos por uma “fatia” da grande riqueza mineral do país. Atualmente este estado de guerra de facto continua no leste da República Democrática do Congo, sobretudo nas regiões do Kivu, Ituri e mais recentemente no Kasai. Isto aconteceu e continua a acontecer porque esta situação atípica e anárquica de guerra é lucrativa para todos os beligerantes.
Desde 1998 há imensos grupos armados por todo o país, sobretudo no leste do país, que lutam entre si para aproveitar a riqueza mineral. É frequente crianças serem usadas como soldados. Este grupos armados são particularmente perigosos: há relatos de escravidão sexual, canibalismo forçado e uso de tortura por parte das forças armadas em conflito.

Em janeiro de 2001 (em circunstâncias ainda meio misteriosas) Laurant Kabila foi assassinado pelo seu guarda costas, tendo o seu filho, Joseph Kabila assumido o poder. Formalmente a guerra terminou em 2003 com a assinatura do tratado de paz (os acordos de Sun City, assinados numa cidade casino na África do Sul) e com a formação da mais numerosa e dispendiosa missão de paz da ONU (MONUSCO), tendo sido aprovada uma nova constituição para o país e Joseph Kabila vencido as eleições em 2006. Com este presidente, existe uma muito maior abertura à influência do Ruanda no país, que ainda tem uma presença muito forte no leste do Congo. Joseph Kabila também tem uma relação muito próxima com Angola e Zimbabwe, também estes têm tropas no país (no caso de Angola sobretudo no litoral do Congo, próximo ao seu enclave de Cabinda).

Mas a história não termina aqui: hoje estão presentes imensos grupos armados no país, que cometem as mais horrendas atrocidades que podem imaginar. Joseph Kabila também não é de todo um presidente democrático: não existe liberdade de imprensa no país, e muitos dos seus opositores estão presos, mortos ou no exílio. O País continua a ser um dos mais pobres no mundo, sem infraestrutura adequada à sua dimensão, com elevada taxa de desemprego e criminalidade, tido ainda como um dos piores do mundo em igualdade de género e liberdades políticas. Enquanto o exército congolês atua como uma outra milícia, os serviços públicos são praticamente inexistentes e existirem vários e documentados episódios de violações de direitos humanos, como o caso mais recente das execuções em Beni e as decapitações de dois funcionários da ONU no Kasai. A ampla maioria da população vive no limiar da pobreza: 75% da população não tem acesso a água potável, 30% é analfabeta, mais de 70% vive com menos de 1$ por dia. Em Kinshasa 9 em cada 10 mulheres vivem da prostituição, e mais de metade das mulheres em todo o país têm Sida. O Congo é um dos piores países do mundo para se ser mulher, a violação ainda hoje é uma temível arma de guerra: para além das sequelas psicológicas e do sofrimento físico, muitos dos soldados são portadores de doenças sexualmente transmissíveis, e usam a violação como meio de espalhar essas doenças nas comunidades locais.
Esta foto foi tirada por Daniel Etter do Der Spiegel em 2017, mostra um homem a queimar o lixo no principal mercado de Kinshasa. O sistema de recolha de resíduos é muito pouco frequente na capital, e inexistente em praticamente todo o país, daí que este seja o método mais usado, ainda que extremamente poluente e perigoso para a saúde pública.

Em todo este período, entre 1998 e hoje, perderam a vida mais de 7 milhões de pessoas, sendo que hoje o país atravessa uma nova crise política, pois o mandato constitucionalmente atribuído a Joseph Kabila expirou em dezembro de 2016, mas este continuou no poder.
Em agosto de 2018, o presidente anunciou que não se irá candidatar às eleições a realizar no próximo dia 23 de dezembro, nomeando ao invés o seu ministro do interior, Emmanuel Ramazani Shadary, como candidato. Resta agora ficar atento aos próximos tempos que prometem ser conturbados.

Chegando a este ponto, é agora importante questionar-vos: qual é a importância do Congo para nós e o que tem de diferente de outros países africanos? A importância é imensa, dado que os minérios que lá se encontram, nomeadamente o Coltan e Cassitrite que 80% das reservas mundiais estão no país, são absolutamente vitais para econômica mundial, sobretudo para industria electrónica (nomeadamente no fabrico de smartphones, telemóveis, computadores, baterias de carros e aviões). A toda esta riqueza, acrescem grandes reservas de ouro, diamantes, cobre, urânio, ferro, e algum petróleo.

A situação humanitária no país é uma terrível tragédia que TODOS os países do mundo estão envolvidos, sem exceção! Por detrás do “Xadrez” imediato do conflito, existem jogadores muito mais influentes, nomeadamente a China, os EUA, a Rússia, a França e a Bélgica.

O que agora nos devemos questionar é, se é justificável morrerem tantos milhões de pessoas em prol do desenvolvimento tecnológico? Porque não há outra maneira? Porque é que este conflito passa escondido e porque é que é tão pouco falado?
Atualmente há mais refugiados do Congo que dos países do Mediterrâneo: são cerca de 4 milhões nos países vizinhos, sobretudo Angola. Esta foto foi tirada pelo ACNUR ao Campo de refugiados de Kahe em Kitchanga (perto da fronteira com o Uganda).



Parte de tentar melhorar o que se passa na República Democrática do Congo, passa por procurar atingir a consciência popular sobre o problema. Para isso que este texto procurou servir.

Para os interessados no tema, deixo aqui algumas referencias:

https://www.youtube.com/watch?v=Bv-feSp7zUY (o primeiro link que fiz hiperligação, é um documentário generalista de 2012 feito pela ONG Americana “Friends of Congo”, com legendas em português. É muito acessível e completo).

https://www.youtube.com/watch?v=rDqTddLqo-w (o segundo link que deixei, é um documentário feito pela Al Jazzera que investiga a história do assassinato de Laurent Kabila e toca em múltiplos pontos da história do país).

http://www.congoforum.be/fr/index.asp (uma ONG belga especialista em informação sobre o Congo e com notícias diárias sobre o país. Infelizmente ainda não existe versão inglesa, mas não obstante é uma excelente fonte de informação).

Van Reybrouck, David (2015). Congo: The Epic History of a People, HarperCollins Publishers, fevereiro de 2015. Um excelente livro de um jornalista holandês, mas traduzido para o inglês e francês, que cobre quase sob forma de romance, a história do Congo, desde a chegada dos belgas no séc XIX até 2010.

Para quem gosta de cinema, há um bom filme que foi apresentado no Festival de Cinema de Cannes em 2000, chamado Lumumba (dirigido por Raoul Peck). O filme, como o titulo indica, é inspirado nos últimos meses de Patrice Lumumba, o primeiro ministro eleito do Congo depois da independência, alude à altura da descolonização do país e aos violentos primeiros meses após a independência.

2 comentários:

  1. Excelente texto, Luís. Muitíssimo esclarecedor. Infelizmente, mais uma guerra esquecida, que resultou em mais um grande desastre humanitário. A "maldição" de um país tão rico em recursos, saqueado pela cobiça das grandes potências imperialistas e pela ganância das medíocres e corruptas elites locais.

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    1. Uma grande (e triste) verdade.
      Ainda assim, muito obrigado pelo seu comentário stor!

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