sábado, 26 de outubro de 2019

Conflito no Ituri e atualização política da República Democrática do Congo




Queda de água no rio Ituri, afluente do rio Congo que dá nome à região.


Neste primeiro ano da presidência de Felix Tshisekedi, verificou-se um acentuar da atividade militar na região do Ituri, no leste do país, uma região com enormes reservas de ouro.

Mina de ouro na região.
Localização da região no país.
No Ituri, tal como o vizinho Kivu, a paz alcançada em Sun City em 2003 ficou-se pelo casino sul africano. Durante a segunda guerra do Congo, a região foi ocupada por tropas do Uganda, país que apenas se separa da região pelo lago Albert, e foi local de terríveis atrocidades. Após 2003, com a “saída” das tropas estrangeiras, imediatamente o conflito regional mudou de uma justificação política para étnica: tal como falei aquando a analise ao conflito do Kasai, importa aqui também referir que as instituições políticas que nós conhecemos, têm uma implantação social muito escassa, na verdade (e na óptica dos locais) conflitos que já duram há muitos séculos atrás ainda assumem enorme importância social. Este é sem dúvida, em legado negativo da Conferência de Berlim no séc XIX, que cria instabilidade na região. Neste caso, as etnias rivais dos Lendus (“os vassalos”) e os Hemas (“os nobres”), numa troca de pilhagens e massacres nas cidades e aldeias da região, re-assumiram sob força armada um conflito histórico pelo controlo da terra arável. Mas como o resto do país, mais importante a terra, é o que se encontra no seu subsolo. O Uganda, com a sua retirada do país, não teve intenções de prescindir da sua “fatia” dos lucros da segunda guerra do Congo, e aqui o conflito  complica-se: diferentes facções do exército ugandês (manifestando no vizinho Congo as suas divisões internas), financiavam tanto Lendus como Hemas, e criando neles também “sub milícias”, ao ponto de também o vizinho Ruanda e o próprio exército congolês começarem a intervir no conflito, financiado e armando a quem melhor servia (e serve!) os seus interesses.

Em 2006, aquando a aprovação da atual constituição e a vitória do ex presidente Joseph Kabila nas primeiras eleições presidenciais do atual regime, um breve acordo de paz foi conseguido na região. Os três principais grupos armados da região aceitaram entregar as armas em troca de uma amnistia e da sua incorporação no exército congolês. Antes disso Thomas Lubanga (que chegou a matar tropas da ONU na região) e Germain Katanga, foram capturados e mais tarde condenados pelo tribunal penal internacional por crimes conta a humanidade, nomeadamente pelo uso de crianças soldados, massacres em massa e canibalismo.
Refugiados no campo de Bunia, Ituri.

A paz não foi para todos: uma facção Lendu recusou participar no acordo de paz, e continuou a atividade militar na região, tendo a escalada de atividade aumentado em 2012 com a derrota de alguns quartéis do exercito congolês e pela ocupação de algumas regiões. Em 2014, por intermediação da ONU, alguns dos combatentes entregaram as armas e aceitaram o acordo do governo de amnistia e integração no exército, mas até à data os combates entre várias milícias e tropas do governo continuam, e acentuaram-se com a retirada das tropas da ONU em dezembro de 2017 de Bogoro (a sua principal base da região). Num mês de inicio da crise eleitoral e com o aumento da instabilidade do país, criou-se um ambiente favorável à guerra, sendo que milhares de pessoas abandonaram a região para o vizinho Uganda.

Gráfico alusivo das flutuações do preço do ouro na última década, retirado do site goldprice.org

As causas do conflito são confusas, mas o financiamento é evidente: o ouro. Se observarmos o gráfico acima, podemos intuir duas conclusões: a primeira, mas abrangente, é a de que o preço das matérias primas é bastante flutuável, e em países, em que a sua exportação assume o principal peso da economia, esta será sempre muito frágil, andando “à corrente” das flutuações do mercados internacionais; a segunda intuição é a mais óbvia, o conflito no Ituri assume maior intensidade conforme maior seja o preço do ouro, e podemos ver que no presente o preço do ouro está no patamar mais elevado desde 2012/13. Por esse motivo, a guerra no Ituri assume maiores proporções nesses anos, pois são os anos em que as receitas são mais generosas. Por isso, pessoalmente, mantenho o meu cepticismo em relação à argumentação étnica para justificar o conflito: claro que dá o seu pretexto, mas racionalmente ninguém luta se não tiver um bom motivo para lutar. E lucrar é sem dúvida o grande motivo para a guerra e os conflitos na República Democrática do Congo. Por isso não é de esperar melhorias na situação da região...

Tropas rebeldes no Ituri, em meados de 2018.

Antes de terminar o artigo, vou escrever um pouco do que se passa politicamente na capital Kinshasa: entre várias dificuldades, o presidente Tshisekedi conseguiu formar governo, mas para muitos analistas, este não passa de um “fantoche” de Kabila: o partido do ex presidente ocupa 70% da Assembleia Nacional, sendo os principais sectores da governação como o ministério da Mineração, da Justiça e da Defesa, estão nas mãos de políticos próximos a Kabila. Este mesmo já deixou antever que não tem intenções de deixar a vida política, querendo retornar nas eleições de 2023! As reformas de Tshisekedi têm sido tímidas, fruto da fragilidade da situação em que se encontra, já vendo também enfraquecida a sua posição no seu partido. Por enquanto, Felix Tshisekedi vai tentando destacar-se na política externa. Hoje está em Belgrado, numa visita de estado à Sérvia, esta semana reuniu-se com o presidente russo Vladimir Putin, e tem negociado com o FMI e o Banco Mundial, sem grande sucesso, um pacote de ajuda externa ao país no valor de 5 mil milhões de dólares. Resta então aguardar pelo desenrolar dos acontecimentos no país.