sábado, 22 de dezembro de 2018

Crítica à série “O Idiota” (2003)


Nota: no essencial este texto corresponde a um outro texto meu, que foi escrito para a página do Facebook “Um Oitavo”, com uns devidos retoques e adições.


Recentemente encontrei uma série russa com legendas em inglês da adaptação do livro, com o mesmo título, escrito por Fiodor Dostoievsky em 1869. Aproveito este texto para fazer crítica do livro e série, esta definitivamente é a melhor adaptação de livro para série que já vi. Tendo lido o livro e assistido a série, fico com a sensação de que seguramente o interessado pode optar por uma das duas vias de conhecer a história, pois ambas são excecionais.

A história cobre o regresso do ficcional Príncipe Lev Nicolayevich Mushkin à Rússia, depois de uma longa estadia numa clinica suíça por motivos de saúde. Embora tenha um prestigiado título nobiliárquico, o príncipe não tinha família nem conhecidos na Russia, pelo que nesta história analisa a sua (tentativa) de integração na sociedade russa. Na minha opinião, este é um dos personagens mais bem criados pela literatura: o príncipe na opinião generalizada dos críticos é uma mistura de Jesus Cristo com Dom Quixote. Concretizando melhor, é, no fundo, uma pessoa que preservou a inocência, a bondade e a sinceridade (que é mais característica das crianças), conjugada de uma enorme inteligência e visão crítica do mundo, e que por isso não consegue ter o respeito que merece, numa sociedade hipócrita e materialista. Por isso é tratado e referido como um idiota. Não obstante, gosto de pensar que o príncipe personifica a incapacidade da sociedade viver com base na honestidade, respeito e perdão. Indo agora numa vertente filosófica da ação humana, Dostoievski tentou criar uma pessoa ética e moralmente perfeita,  e daí os críticos fazerem a associação com Jesus, mas o desenrolar da obra acabou por demonstrar que uma pessoa, por mais perfeita possível que possa tentar ser e agir, invariavelmente vai cometer erros, magoar pessoas e ficar mal visto em sociedade, o que em si é paradoxal.
 
O Príncipe Mushkin, personagem principal, interpretado por Evgeniy Mironov.

Os acontecimentos ficam particularmente interessantes quando este toma contacto com a bela e cobiçada Nastassia Filipovna, concubina de um rico aristocrata, e com a bonita, fascinante (e ciumenta) Aglaia Ivanova, filha mais nova de um rico general e uma das mulheres mais deslumbrantes da alta sociedade russa. As duas têm origens completamente diferentes, Nastassia perdeu os pais muito nova e foi recolhida e educada por um homem muito rico de Petersburgo (nome à época de São Petersburgo), e os traumas do difícil passado acabam por moldar muito a sua maneira de ser, sentindo o príncipe uma enorme necessidade de a auxiliar. Já Aglaia vem de uma família mais tradicional, teve uma infância fácil e confortável e, ainda que sinta um grande carinho pela família, está cansada do comum homem da aristocracia russa e potencial pretendente para casar (alias, todo o ambiente em volta de si "casamenteiro" a atormenta), e esta acaba por olhar para o príncipe como uma "lufada de ar fresco". Em contrapartida, este acaba por com ela simpatizar, e estes tornam-se importantes confidentes.
 
Nastassia Filipovna, interpretada por Lidiya Velezheva.
Como principal antagonista do príncipe surge Parfen Ragojin, herdeiro de um rico comerciante russo, que no livro é a primeira pessoa que conhece o príncipe na sua viagem de regresso da Suiça. Este mostra, desde início, uma descontrolada paixão por Nastassia, usando a fortuna deixada pelo pai para se conseguir aproximar dela. Sendo sucinto, Parfen é exatamente o oposto do príncipe, é uma pessoa que se deixa levar pelas emoções com uma tremenda facilidade, mesmo que o leve à consequências desastrosas (mesmo que este tenha consciência delas). Representa também a vida boémia das classes mais altas russas, estando frequentemente em estados eufóricos ou violentos. Embora sendo opostos, o Príncipe Mushkin toma Ragojin como um amigo; e este, em contrapartida, ainda que odeie na maior parte do tempo, acaba por sentir um certo respeito e admiração por ele.
 
Parfen Ragojin, interpretado por Vladimir Mashkov. Mashkov é o ator mais conhecido da série, já apareceu em filmes de Hollywood.
O amor é o tema principal desta história, mas tratado de uma maneira diferente que Tolstoi fez com Anna Karenina: aqui o que é analisado não é tanto a instituição do casamento, mas o ciúme, o sentimento humano capaz de levar qualquer relação ao extremo e à loucura. A “faísca” entre o Príncipe Mushkin e Ragojin e entre Aglaia e Nastassia são a prova disso. Talvez a inocência do príncipe tenha sido o que causou toda a tragédia, mas também prefiro pensar que a sua bondade genuína e a sua maneira de ser torna-se incompatível com o que é normalmente uma relação amorosa, que são cada vez mais desequilibradas. É humano sentir-se alguns ciúmes, mas podemos tirar da história que talvez deixar-se dominar completamente pelas emoções e viver uma vida que não é honesta (consigo mesmo e com os outros) é uma receita perfeita para a infelicidade. Mas isso já é mais complexo de se falar, a vivência de cada um trata de procurar ver isso.
Aglaia Ivanova, interpretada por Olga Budina.
A história em si tem ainda mais profundidade, abordando temas diversos como a religião, a pena de morte e até a ascensão do socialismo na Rússia, muito pela figura do príncipe, acabando este (não obstante da tremenda inteligência que demostra), por cair quase sempre no ridículo em eventos sociais, o que manifestamente afeta a sua imagem.

Falando em aspetos mais cinematográficos desta série, deixo duas ideias: a primeira, sobre o tratamento do amor, cada vez mais se confunde nos mass media por paixão e sexualidade, essa série foi um ótimo “remar contra a maré” e pessoalmente fico triste que não tenha tido o impacto fora do leste da Europa que merecia. Por outro lado, como já falei de novo, quem assiste a estes episódios fica com a certeza que existe cinema de muito boa qualidade fora de Hollywood e para além da língua inglesa.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Crítica ao filme "Les Femmes du 6e étage" (2011)


Para ser sincero, não sou grande conhecedor do cinema de França. Tive conhecimento deste filme numa aula de francês que tive recentemente, e o que se falou foi o suficiente para me chamar a atenção: ver este filme foi, para mim, uma agradável surpresa e uma boa experiência.
Podemos tratar o filme de várias óticas, uma histórico-social, uma psicológica e uma mais estético-formal:
Começando pela perspectiva histórico-social, o filme alude à emigração espanhola para França nos anos 60, em termos que são em larga escala similares ao da emigração portuguesa nessa altura: as personagens que dão o título ao filme são as empregadas domesticas espanholas que vivem num quarto no sótão do prédio onde trabalham, não têm uma vida particularmente folgada e luxuosa, vivem em quartos muito pequenos, partilhando espaços comuns (também eles de dimensões reduzidas) como a casa de banho, cuja manutenção é em larga escala desleixada. Os salários são relativamente baixos para a realidade francesa, mas para emigrantes são muito acima do que o que estaria ao seu alcance no país de origem. Em Espanha, tal como Portugal, à época estava institucionalizada politicamente um regime ditatorial, dirigido pelo General Francisco Franco, mas, diferente de Portugal, o país ainda estava a recuperar da violenta guerra civil (1936-39) que deixou graves marcas em muitos espanhóis, como o filme o retrata. Por outro lado, as condições de vida em França, para além de todo este cenário e do todo o choque cultural que a emigração pressupõe, eram difíceis, uma certa discriminação era comum (o exemplo das empregadas domesticas não puderem usar o elevador é paradigmático nessa afirmação).
 
Os dois personagens principais, o francês Jean-Louis (Fabrice Luchini) e a espanhola Maria González (Natalia Verbeke)
Quanto à questão psicológica, este centra-se em Jean-Louis, personagem principal e proprietário do prédio, este vai-se transformar em toda a obra: a carreira de sucesso como gestor de valores mobiliários e a vida desafogada trouxeram-lhe uma liberdade que nem sempre é libertadora. Jean Pierre sentia-se fatigado, da rotina em que a sua vida caiu, sobretudo familiar, que se tornou excessivamente circular, repetitiva se se preferir (dos hábitos sociais previsíveis da sua esposa na alta sociedade parisiense, ao mimo dos seus filhos ansiosos por herdar desde tenra idade). A sua aproximação às empregadas espanholas permitiu-lhe uma “lufada de ar fresco” e consequente nova visão do mundo, que o conduziu para o caminho da felicidade. Pessoalmente falando, este trajeto começou em pequenos gestos, como arranjar a casa de banho comum das empregadas, e todo um conjunto de boas ações que o fez sentir dono do seu destino e lhe deram grande satisfação própria. Claro que o filme tem a componente de romance, mas acho que seria excessivamente emotivo e insuficiente analisar a perspetiva psicológica só por aí. Ironicamente a situações como a de Jean-Louis são chamados de problemas de primeiro mundo, parece que nem sempre uma vida mais completa materialmente corresponde a uma vida mais feliz - definitivamente a vertente psicológica dos cidadãos, é uma que deve merecer maior atenção dos países desenvolvidos.

Quando a estética formal, o filme não tem as edições nem os orçamentos que estamos habituados a Hollywood, mas considero que em termos de guião e de mensagem, não lhes deve nada. Para além da mensagem mais séria, o filme tem também um certo humor francês e elementos de cultura espanhola. Uma visão multicultural e inovadora é sempre bem vinda, pelo o que a minha avaliação é francamente positiva.